A anistia não industrializa esquecimento – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Consultor.

Quando foram denunciadas 33 pessoas, incluindo um ex-presidente da República, por um golpe no País, abriram-se as portas da memória para o desfile de lembranças de um passado de quase sessenta e um anos. Recordações que caminham, ainda, com botas de chumbo, pelos becos escuros dos grandes sofrimentos. O Golpe de 1º de abril de 1964.


Movimento absolutamente desvinculado da mobilização popular. Vestindo a farda das ditaduras aglutinou, apenas, soldados e policiais. Contaminou o espírito da juventude inoculando o veneno da desesperança no destino histórico da Nação. Com esse comportamento, conseguiu subtrair da alma popular a essência do que dificilmente se pode repor: a confiança na dignidade de propósitos dos que, por escolha eleitoral ou a mão de ferro, exercem o governo. Três dias após a deposição do presidente da República, já os Estados Unidos “reconheciam” o novo governo, a ditadura. Não demorou muito a assistência ianque com a remessa de peritos em tortura e técnicas em desaparecimento de “subversivos” (que palavra!). O Golpe militar de 64 nasceu e morreu sem grandeza, deixando na sua passagem, tão somente, o rastro abominável do Ato Institucional nº 5.

Tive a curiosidade de assistir programas de TV versando sobre o acontecimento. Lamentável decepção. Uma medíocre e superficial montagem para projeção do nada. Nada que retratasse o desdobrar dos males que a ditadura impôs ao país. Quase tudo se resumiu num espetáculo musical. Parecia mais um canto de exaltação, com a predominância da dubiedade embrulhada num crepúsculo maciço do mal de Alzheimer. Mergulhados no esquecimento ficaram os capítulos de torturas e assassinatos brutais levados a efeito sob o olhar oblíquo dos ditadores travestidos de “Presidentes”, por força de decisões nanicas de um Congresso emasculado. O Brasil experimentou com aquele regime, efeitos de uma guerra de retrocesso. Um surto pernicioso contra as franquias democráticas.

O grau de repressão alcançou as dimensões estratosféricas da maldade humana. O horror à inteligência determinou o exílio dos mais expressivos representantes da cultura nacional, a exemplo do professor Josué de Castro, integrante da constelação dos sábios do Mundo na avaliação de Bertrand Russel. Se não fosse a competência da literatura de um filho, ao escrever um livro, e tornada essa literatura em um filme ganhador do primeiro Oscar brasileiro, até hoje encontrava-se insepulto no cemitério das dúvidas o destino do deputado Rubem Paiva, massacrado pela tortura e dado como “desaparecido”. Apagados na escuridão da “conveniência” os gemidos dos que sucumbiram nos laboratórios do sofrimento dos torturadores.

A história é a retratação no aqui e agora dos fatos pretéritos, objetivando a sedimentação da cultura pela forte exposição de episódios que as gerações posteriores não presenciaram e que o monopólio da mentira conseguir esconder da própria época dos acontecimentos. A História não é sucessão ornamental de anedotas políticas, mas a verdade no seu significado mais objetivo e universal. Por essa razão é que a anistia não industrializa esquecimentos, nem envelhece as oportunidades de protesto.

Ninguém falou sobre o fechamento do Congresso. Não houve referência ao diálogo entre o ditador Geisel e o seu ministro do Exército, general Dale Coutinho. O ministro: “Agora melhorou, quando nós começamos a matar”. O ditador: “Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser” (Fonte: Ditadura Derrotada, de Elio Gaspari). Enquanto isso, o general Golbery, peça basilar da ditadura, recebia salário mensal de US$ 10 mil na qualidade de “presidente” da Dow Chemical, multinacional norte-americana instalada no Brasil.

Não custa repetir: a anistia não industrializa esquecimento, nem envelhece a oportunidade de protesto.

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