A chuva dói nos olhos – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

Chego em Manaus, e como todos sabem, Manaus, é uma cidade que tem dois climas: um com muito sol, e outro com muito sol mais muita chuva também. Trafegamos numa cidade com duas estações climáticas: verão e chuvas. Como não estamos no período de sol, o jeito é desviar dos buracos nossos de cada dia, entre motoristas sem freio e pedestres acelerados. Confusão, eis o outro nome de uma manhã chuvosa nas nossas ruas. Paro no sinal fechado. Surgem dois menores na frente do carro. Têm entre seis e nove anos de idade. Porque não possuem pão, improvisam um circo de malabaristas miseráveis na minha frente. Chove, chove muito. Os trinta ou quarenta segundos ali parado me fazem refletir sobre o sinal vermelho que é a vida daqueles dois. Franzinos, sem camisas, descalços, usam shorts largos e rasgados, qual palhaços, mas não provocam risos nem aliviam o espírito.


Naquele picadeiro sem lona, buzinas a tocar dobrado, o espetáculo é censurado para as crianças nutridas dos automóveis. Não estava preparado para a expressão de angústia, quase-desespero, do mais raquítico deles, molhado até a alma, ao encerrar o arremedo de malabarismo, quando soube que eu não tinha – e não tinha mesmo – um trocado para lhe dar. Parecia chover nos seus olhos. Lembrei-me de Tom Jobim: é pau, é pedra, é o fim do caminho. Aquela poesia suave foi escrita ao término de um verão carioca, celebrando uma construção de pedra e cal. A miséria, diferentemente das construções, é feita de pedra e caos. Aqui, nada de outonos ou primaveras. As cantigas possuem tons fortes, que variam entre o vermelho-sangue, o rosa-choque e o cinza-chumbo.

Estava escrito no jornal, lido cedinho: um homicídio ali, um estupro acolá, um assalto em cada esquina. Olho as crianças que macaqueiam seu número sem graça. Onde estarão os que as geraram? Pois, no duro, pai e mãe elas nunca tiveram. Em quais fatos estampados na página policial serão atores, um dia? Farão papéis de vítima, algozes ou os dois? Quantos anos/meses/dias lhes restarão de vida? Morrerão de bala, de susto ou de vício, como nos versos de Caetano?

Senhoras e senhores, eu vi a cara da morte, e ela estava viva, como anunciou aquele outro poeta, Cazuza, cujo viver foi um lento suicídio. A dona bruxa está viva, sim, em cada sinal fechado onde houver crianças pulando um salto solto no escuro do mundo, feras famintas sem amestrador.

Muda o sinal. Os meninos invertem a mão e repetem a velha cena na outra esquina. Saio convencido de que já não basta cada um nós fazer a nossa parte. É preciso mais, porque muitos penetras curtiram o espetáculo da vida, não pagaram o ingresso e, agora, as ruas nos apresentam a conta. Como doem trinta ou quarenta segundos parados nos sinais de uma grande cidade!

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