A Corrupção – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

É uma lista e tanto o tal catálogo que todo ano é divulgado no Primeiro Mundo contendo o nome dos países mais e menos corruptos. É sintomático que nesse precioso rol da (i)moralidade planetária encabeçando-o como exemplo dos mais puros e honestos, encontram-se as nações arianas (escandinavos, germânicos e anglo-saxões), concedendo-se, porém, uma indicação positiva para essa gente de Cingapura (uma bem dosada mistura de malaios e chineses).


No extremo oposto da lista, sem grandes surpresas, entre as 20 nações mais corruptas, acham-se as africanas (Uganda, Moçambique e Nigéria); uma outra habitada por índios (Bolívia); os eslavos (Rússia e a ex-Iugoslávia); e os amarelos (China). O Brasil, nação de mestiços, ocupa uma inglória posição intermediária (é o 49º numa lista de quase cem). Nem tanto ao mar nem tanto à terra: na exata dose da sua mistura racial. Confirma-se assim, com tal cândido e despretensioso levantamento, o que as boas almas colonialistas sempre disseram no passado: que neste mundo só dá para confiar em gente branca, particularmente no habitante da Europa Ocidental.

Significativamente, a Transparency International, a ONG que regularmente divulga esse “acurado” levantamento, que diz colhido em fontes idôneas (empresários, burocratas internacionais, turistas, etc.) tem sede em Berlim! Uma organização da qual não se tem nenhuma referência maior – sem que ninguém sabido a solicitasse ou a autorizasse, sem conhecer-se qual o seu método empregado na aferição feita -, difunde anualmente tal infamação. A leitura é simples: os louros de olhos azuis que vivem nos países mais desenvolvidos são honestos, seres superiores particularmente imunes ao suborno ou às falcatruas. Já o restante, o povo escuro do resto da terra, que Deus nos acuda!

Evidentemente que nenhuma consideração é feita sobre a situação socioeconômica ou política em que os países denunciados se encontram. Carimbam-nos como que habitados por ladrões e fim de conversa. Igual chama a atenção que a tal ONG europeia coloca na parte mais rebaixada os que são os satanizados do momento: o Iraque do ex ditador Saddam Hussein morto desde 2003, e a Sérvia do tempo de Milósevic (no 89º, o penúltimo lugar). Os amarelos, por sua vez, são em geral divididos em bons e maus. Os chinas bons são os ocidentalizados (Cingapura e Hong Kong, que ocupa um honroso 16º lugar), enquanto que os chinas maus, os comunistas, estão lá na rabeira (a China Popular está no 63º lugar). Seria interessante verificar-se qual a motivação real dessa preocupação em difundir pelo mundo inteiro esse tipo de lista. Parece espelhar um prazer um tanto mórbido da parte dos que vivem nos países desenvolvidos – majoritariamente brancos -, em comprazerem-se em humilhar ainda mais os que habitam os países situados nas áreas mais desgraçadas do globo.

Ano a ano ela nada mais reproduz em escala universal do que um velho preconceito: aquele que diz que os brancos e ricos são confiáveis e íntegros, enquanto que a gente escura e pobre é invariavelmente desonesta e larápia. O mais espantoso, entretanto, é a disposição da mídia brasileira em alardear o resultado. Toda época do ano em que tal relação difamatória é anunciada, abrem-se espaços na imprensa do Brasil para que se execute, com todo o alarde possível, um cerimonial público de auto degradação, anunciando em alto e bom som, quase que a clarinadas, a má posição em que o país se encontra. É como se saboreassem por aqui a vileza do país em que nasceram.

“Gostando em ser cão”, como disse Guimarães Rosa, os comentaristas tecem uma série de considerações, confirmando que a ONG está bem certa e que o país não presta mesmo. Em nenhum momento questionam a validade da publicação ou sua possível correção científica (sequer lançam suspeitas sobre o comprometimento ideológico dela). A capitulação moral dos formadores de opinião do país é tal que nenhum esboço de resistência, de interrogação, de questionamento é feito.

Hegel, o grande filósofo, num capítulo memorável de um dos seus livros, dizia que a verdadeira afirmação do senhor sobre o escravo dava-se no momento em que o vitorioso conseguia introjetar definitivamente na consciência do derrotado a aceitação da sua submissão, da sua inferioridade. A nossa mídia, pois, sempre tão preocupada em denunciar preconceitos, parece desatenta ao fato de que ela mesma reforça os estereótipos negativos que pairam sobre o Brasil e o Terceiro Mundo em geral ao divulgar acriticamente tal tipo de listagem da desonra.

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