A valorização do historiador – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

Sou da geração de amazonenses/manauaras que sonhavam entrar no curso de Ciências Sociais da UA para ter aulas de História. Para minha frustração, circunstâncias outras me fizeram cursar Administração, onde depois diz mestrado e iniciei meu doutorado. Mas não me arrependo, consegui absorver o que é gestão e hoje sou crítico daqueles que acham que sabem administrar sem sequer conhecer as funções da Administração. Mesmo assim, mergulhei nos egípcios e gregos, no Renascimento e no Iluminismo, nas revoluções francesa e inglesa, nas guerras mundiais do século XX, em vez de — eu imaginava — aprender na UA como exatamente formular e realizar a Revolução Brasileira.


Lembro-me de que, para complementar nossa formação em Administração, muitos colegas e eu fazíamos seminários sobre ‘‘realidade brasileira’’, que incluía capítulos selecionados sobre o feudalismo no Brasil, entre outras descobertas sensacionais… Isso tudo nos idos de 1975. Na verdade, nossas convicções políticas forneciam todas as respostas que precisávamos, não havia por que perder tempo com investigações cansativas. Em qualquer período da História, em qualquer latitude do planeta, sabíamos identificar os bons e os maus, quem era nosso e quem era ‘‘deles’’.

Alunos e professores previam, dentro da visão ‘‘o mundo caminha para o socialismo’’, que estávamos às portas de um pronunciamento das esquerdas e não de um golpe de direita. Pagamos todos muito caro pela nossa leviandade e aprendemos que ler a história não era tão fácil como parecia. Essas reflexões me vêm à cabeça por conta de importantes mudanças que estão ocorrendo na área de História, de alguns anos para cá.

O historiador está sendo cada vez mais valorizado, as pesquisas dão conta de objetos cada vez mais amplos, a informática e a Internet facilitaram imensamente a parte mecânica do trabalho de investigação, profissionais são chamados para explicar o mundo na mídia. Já há historiadores trabalhando com planejamento urbano, com projetos turísticos, como consultores editoriais e empresariais. Ao mesmo tempo que isso ocorre, e de maneira contraditória, há um movimento em escolas, principalmente no ensino médio, que, no limite, tende a substituir o ensino de História por outra disciplina que eu chamaria de ‘‘realidade mundial’’: muitos professores têm abandonado tudo que aconteceu antes do século XIX, alegando não ser possível dar ‘‘tudo’’, daí terem que se concentrar no passado mais próximo, em detrimento do remoto. Claro que uma parte da responsabilidade disso cabe aos diretores (e, talvez, à própria sociedade), que, a partir de um altamente discutível pragmatismo neoliberal, diminuíram drasticamente o número de aulas de História. Eu não pouparia, contudo, muitos colegas que, em nome de um ‘‘ensino crítico’’, acabam alienando seus próprios alunos ao não lhes dar oportunidade de adquirir uma visão mais abrangente de História.

Assim, nada de processo civilizatório, nada de monoteísmo ético dos hebreus (base do cristianismo), nada de filósofos gregos (base do pensamento ocidental), nada de Direito Romano (base do nosso), nada de Europa medieval, de Renascimento, de Mercantilismo e descobrimentos, nada de Bach e Mozart, de Dante e Camões.

Parece que nos conformamos, mesmo, em abrir mão do conhecimento em troca de informações. E, mais grave, desistimos de, ao menos, nos aproximar do patrimônio cultural da humanidade. E qual é o papel do professor senão estabelecer uma articulação entre o patrimônio cultural da humanidade e o universo cultural do aluno? Ora, a presença do homem civilizado neste planeta tem poucos milhares de anos e tem causado terríveis males: destruímos sem dó a natureza, submetemos os mais fracos, matamos por atacado e a varejo, deixamos um terço da população mundial com fome, queimamos índios e por aí afora, mas não é só isso que fazemos. Escrevemos poesia sublime, teatro envolvente e romances maravilhosos.

Criamos deuses e categorias de pensamento complexos para compreender o que nos cerca. O professor de História não pode ficar preso apenas a modos de produção e de opressão (embora isso seja fundamental), mas pode e deve mostrar que tivemos talento, graças à cultura que produzimos, de nos vestir melhor que os ursos, de construir casas melhores que o joão-de-barro, de combater melhor que o tigre, embora cada um de nós, seres humanos, tenha vindo ao mundo desprovido de pelos espessos, asas ou garras.

Cada estudante precisa se perceber, de fato, como sujeito histórico, e isso só se consegue quando ele se dá conta dos esforços que nossos antepassados fizeram para chegarmos ao estágio civilizatório a que chegamos. Para o mal, mas também para o bem, bolas.

A aceleração do tempo histórico está deixando claro que devemos estar preparados para ocupar um espaço na sociedade globalizada. A percepção do conjunto de movimentos que estão sendo executados no mundo exige, por parte dos nossos jovens, uma cultura que vá além da técnica. História neles.

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