Burrocracia – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

É uma lei sociológica universal: ao passo que a tecnologia cresce em razão aritmética, a burrocracia cresce em razão geométrica. Tanto no setor dos serviços privados como no setor público. Trata-se de um processo extremamente complexo e metastático, como o câncer. Como o câncer, devora energias construtivas transformando-as em ameaças letais para o indivíduo e a sociedade, pois é um devorador de recursos, neutralizador da produtividade, propagador de burrice e destruidor do tempo. E, como a vida é feita de tudo isso, pode-se alinhar a burrocracia como uma das mais insidiosas e piores moléstias da atualidade. Ela se origina fundamentalmente da desconfiança na pessoa humana, cujas palavras e atos são considerados despidos de boa-fé e indignos de credibilidade, devendo ser substituídos por papéis e processos.


Mas como papéis e processos são também operados por pessoas, é necessário certificá-los com outros papéis, selos, timbres e carimbos, o que origina a “corrente da felicidade burrocrática” e novos motivos de infernização do cidadão. Obviamente, nenhum dos segmentos desse processo assegura confiabilidade ao que certifica, nem seus operadores assumem responsabilidade pelo que fazem, já que a inconfiabilidade pessoal é seu dogma fundamental. Resultam daí as auditorias, os recadastramentos, processos administrativos e judiciais, os apelos e revisões de instância, as pizzarias das comissões de inquérito e a produção de novas leis, decretos, medidas provisórias, instruções e portarias.

Tudo isso cria novos processos burrocráticos que submetem todos os cidadãos dados como inconfiáveis independentemente de prova em contrário. Pois é mais fácil submeter a maioria dos cidadãos honestos ao cumprimento das leis do que impedir uma minoria de delinquentes de fraudá-las.

A burrocracia demonstra notável afinidade com a safadeza, mesclando-se a ela de forma indissolúvel. Exemplo dos mais corriqueiros é o de que um dos maiores bancos brasileiros, mais avançados no uso dos recursos informáticos, leva hoje dez dias para entregar um talão de cheques após a abertura de uma conta. Obviamente não porque não o possa fazer antes. Em qualquer dos shoppings os mais modernos, o comprador gasta mais tempo para passar pelo caixa do que para fazer sua compra.

Há alguns anos levei mais de meia hora para que uma funcionária bancária conseguisse me dizer qual era o saldo disponível de minha conta, após fazer diversos cálculos herméticos de somas e deduções, pois então, como agora, os extratos estão escritos na linguagem burrocrática de siglas, somas e deduções ininteligíveis. Para nada se falar dos impressos de impostos. Mas isto é apenas o miúdo da burrocracia.

Um exemplo magno é o que cerca a legislação relativa a loteamentos. Tempo houve em que abundavam loteadores e lotes populares em São Paulo. O loteador comprava uma área, fazia uma planta, registrava-a na Prefeitura e num cartório, entrava com um trator para abrir as ruas, demarcava os lotes e vendia-os. Os compradores começavam no dia seguinte a erguer seus barracos e com o decorrer dos anos iam melhorando suas moradias.

Assim vi nascer muitos bairros que são hoje da classe média de São Paulo. Daí entrou a burrocracia de braços dados com os defensores do povo. Resultado: tornou-se inviável produzir lotes a preços accessíveis às classes de menor poder aquisitivo. Os loteadores honestos cessaram atividades – criou-se assim uma “reserva de mercado” para os desonestos. Nem assim eles deram conta de suprir as necessidades populares.

Terrenos vagos foram preenchidos por favelas e as periferias foram ocupadas por loteamentos clandestinos e invasões que não respeitaram sequer as regiões dos mananciais. Por aí se pode fazer ligeira ideia dos custos econômicos e sociais da burrocracia, camuflados pelas invisíveis metástases do processo burrocrático. Tudo fica legalizado por um oceano de instrumentos e repartições públicas e “socialmente” legitimado por inesgotável literatura sócio jurídica. Todos pagam, mas ninguém confere esses custos. Muito menos responde por eles. A burrocracia tem um corpo gigantesco, mas nenhuma cara visível.

 

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