Chá Ayahuasca para o tratamento de dependentes químicos em Casa terapêutica, no Acre

Internos preparam o chá de ayahuasca para uso contra dependência química na casa Caminho de Luz.
Internos preparam o chá ayahuasca para uso contra dependência química na casa Caminho de Luz.

RIO BRANCO – A mudança na vida de Juliana Arruda, 22 anos, veio em alguns goles de um líquido marrom e espesso:
– Quando tomei o chá pela primeira vez, eu ria, eu chorava. Pensei: “meu Deus, se eu sair dessa, não vou usar mais nada”. É das piores drogas que eu já tomei. Conseguia ver tudo o que eu passei, via uma luz.
Juliana começou a usar crack e cocaína aos 9 anos. Aos 11, ela se prostituía pelas ruas de Rio Branco, a fim de sustentar o vício. Tentou sucessivos tratamentos, mas fugiu de todos. Chegou a morar na rua. Um dia, a mãe de um amigo sugeriu que fosse se tratar em uma casa terapêutica na periferia da capital acriana que adota a planta de propriedades alucinógenas ayahuasca – também conhecida como chá do vegetal ou chá do Santo Daime – para tentar se curar do vício.
– Quando eu soube que (a terapia) era com esse chá do Santo Daime, morri de medo. Não queria tomar, não. Mas foi a melhor coisa que fiz – sustenta.
Na primeira sessão, ela vomitou muito, sentiu calafrios pelo corpo, lembrou-se de inúmeros detalhes de sua vida. Hoje, afirma estar há cinco anos sem usar drogas por causa da terapia.
Tratar a dependência de drogas com outra droga pode parecer um contrassenso. Mas é justamente o que propõe a casa terapêutica Caminho de Luz, onde Juliana se internou. Em meio a mangueiras e castanheiras, em alojamentos de madeira simples e espaçosos, o lugar trata mais de 250 dependentes químicos com doses diárias de ayahuasca. O método, que custa R$ 150 mensais para aqueles que podem pagar, pressupõe reclusão por, no mínimo, nove meses e terapia ocupacional, além do uso cotidiano do chá. Para dar conta da demanda, ali são produzidos cerca de 400 litros da bebida por mês. É a única casa de terapia nesses moldes no Brasil. Seus donos dizem que o índice de recuperação dos dependentes ascende a 50%, contra uma média de 20% das clínicas de recuperação convencionais. Não há, porém, estudos que comprovem a eficácia do tratamento.
– O cabra pode ser durão mesmo, mas a gente não precisa dizer nada. Com o vegetal (ayahuasca) ele vai se ver e ver como esteve errado. É um trabalho de conscientização, de expansão da consciência do sujeito, que o chá ajuda a promover. O chá é uma força espiritual, da natureza – afirma Antônio Muniz, corresponsável pelo trabalho.


O ritual religioso.
O ritual religioso.

BEBIDA USADA NA AMAZÔNIA
A ayahuasca é uma bebida milenar utilizada por indígenas da Amazônia no Peru, na Bolívia e no Brasil. No Acre, descendentes de escravos que trabalhavam em seringais difundiram o uso ritualístico do chá no início do século XX. Pelo país há hoje alguns milhares de adeptos do ritual. O chá não provocaria dependência química, segundo especialistas, e suspeita-se que tenha eficácia biológica sobre o cérebro dos dependentes.
– Temos evidências que indicam que há, sim, um efeito para acalmar a síndrome de abstinência – afirma o psiquiatra Luis Tófoli, da Unicamp, que vem conduzindo estudos no tema.
Segundo Tófoli, a planta pode ter um efeito semelhante ao do LSD, comprovadamente uma droga que auxilia, segundo a literatura médica, a combater vícios como o alcoolismo. Mas ressalta que faltam estudos. Segundo ele, o chá não causa dependência.
Mesmo sem comprovação científica do tratamento, há pelo menos três anos o Tribunal de Justiça do Acre tem enviado presos em liberdade condicional ou que devem cumprir penas alternativas para reclusão e tratamento na Caminho da Luz. Atualmente há cerca de 35 detentos ali. Para cada um deles, a casa recebe um repasse do governo federal. É comum ver pessoas com tornozeleiras eletrônicas caminhando entre as mangueiras e castanheiras do espaço.
– O estado não dispõe de clínicas terapêuticas próprias, então encaminhamos os reeducandos (presos) para clínicas particulares. Eles vão se quiserem, o estado permite, é um uso monitorado – afirma a juíza Maha Kouzi Manasfi, da Vara de Execuções de Penas Alternativas do Tribunal de Justiça do Acre. – Sabemos que um dos maiores motivos de descumprimento de penas e de crimes é o uso de drogas. Na minha opinião, a questão da religião é primordial. O fortalecimento espiritual que a Caminho de Luz faz é fundamental para eles vencerem essa batalha.
Desde os anos 2000, o chá foi liberado para uso religioso e ritualístico no Brasil. Mas não há autorização para uso terapêutico. A Caminho de Luz, que agrega a religião à terapia, está num limbo jurídico. O tratamento pode ser considerado irregular, segundo a regulamentação do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad).
Além disso, a instituição acolhe menores dependentes que perderam o contato com a família, o que, em tese, é irregular.
– O que eu posso fazer? Aqui recebo qualquer um que peça ajuda, somos uma instituição religiosa e humana, estamos de braços abertos para as pessoas – afirma Muniz.
Ele diz que, após o tratamento, parte dos antigos pacientes continua seguindo a religião e frequentando a casa:
– Mas outros só voltam a aparecer dez anos depois, bem de saúde, sem nunca mais terem tomado o chá.
ENTORNO SOCIAL AJUDARIA
Para o antropólogo Marcelo Mercante, o chá pode até ajudar na recuperação das pessoas, mas a força do tratamento está na reconstrução de uma comunidade em torno dos dependentes.
– É um fenômeno parecido com o que acontece em uma comunidade terapêutica evangélica ou até em uma comunidade de ateus. O cerne da dependência é a questão social – diz.
O tratamento com ayahuasca tem riscos. Há quatro anos, o assassinato do cartunista Glauco Villa-Boas pelo jovem Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, que sofre de esquizofrenia, trouxe à tona o problema de ministrar o chá para pessoas psicóticas. Nesses casos, a droga pode provocar surtos.
– O chá não é uma panaceia. E não é para qualquer pessoa. O uso pode ter efeitos benéficos, mas ainda não sabemos quais são eles nem, tampouco, o que é efeito biológico da droga e o que é efeito da comunidade religiosa em torno dos pacientes – conclui Luis Tófoli.
(Por Mariana Sanches ( O Globo)

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