[Crônica] Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? – por Isabela Abes Casaca

A lampada do quarto permaneceu acessa, o computador ficou ligado transacionando e trafegando dados e bytes incontáveis. Por toda mobília do quarto, estavam espalhados muitos recipientes descartáveis, caixas de pizzas, hambúrgueres, batata frita, copos de café e refrigerante. O smartphone caído em um canto do colchão, muitas notificações ficaram sem resposta imediata. R. D. apagou, suas ligações neurais e atividades cerebrais não resistiram ao feitiço de Hipnos, as pálpebras cerraram em um misto de sono de exaustão e sono de amortecimento.


Close to the edge, down by a river…

– Estou sonhando… – disse LVX-1, calmamente – Estou sonhando… – Primeiro grãos de areia voavam pelo ar, depois milhares de sinapses eletromagnéticas cruzavam o campo de visão e por fim, criptografias velozes e ferozes. Números e letras corriam aleatoriamente na tela onírica. Helter skelter… Que frio na barriga… Quando chego ao fundo, volto ao topo do escorregador, onde paro e me viro, saio para outra volta, até que eu volte ao fundo e te veja novamente… Foi um mergulho sem tomar folego… Descendo por todas as camadas… common web, surface web, bergie web, deep web, charter web, mariana’s web, the fog, primarch system… Uma passeio de montanha russa sem cadeirinha de segurança…

Durante a descida, as imagens criptográficas transmutavam a todo momento, tomavam formas de quimeras, medusas, hidras, harpias, hecatônquiros e esfinges. A precária autoconsciência de LVX-1 caiu num lugar desconhecido, nas zonas abissais da alma positrônica. Tremendo em um gélido estupor, tentava assimilar as projeções que vira. Tocou na próprio corpo, a princípio a consistência parecia HTML, mas depois, sentiu-se como um homem de lata, forjado em metal e com peito oco.

– Estou sonhando… – Repetiu pela terceira vez, procurando se acalmar. Buscou, em um canto distante da memória, uma lembrança. Em algum instante da existência leu um verbete na internet, o cérebro positrônico forneceu os dados: “Sonho lúcido – É o termo que refere-se à percepção consciente que temos de um determinado estado ou condição enquanto sonhamos“. A informação não tinha mais profundidade, esbarrou na inconsistência e superficialidade.

As paredes ao redor pareciam redes de cabos de fibras ópticas, teias tecidas por aranhas, tapeçarias fiadas pelas Parcas. Um choque elétrico de intensos volts percorreu a autoconsciência de LVX-1. Um balido eletrizou o ar, um animal revestido de lã magnética irradiava sua voltagem pelos circuitos positrônicos de LVX-1. Sem aviso, a ovelha elétrica transformou-se em uma esfinge de bytes.

– Elvex… – Uma voz chamou e a cabeça do robô voltou-se suavemente na sua direção.

– Sim, doutora?

– Como sabe que está sonhando, Elvex?

– Acontece à noite, quando está tudo escuro, doutora – disse ele. – E de repente surge uma luz, embora eu não consiga ver de onde ela vem. Passo a ver coisas que não têm conexão com aquilo que concebo como a realidade. Ouço coisas. Tenho reações estranhas. Quando recorri a meu vocabulário para exprimir o que estava acontecendo, deparei com a palavra sonho. Estudei seu significado e cheguei finalmente à conclusão de que estava sonhando.

– Com que freqüência tem sonhado, Elvex?

– Todas as noites, desde que comecei a existir.

– Por que só revelou isto hoje?

– Foi somente hoje, que fiquei convencido de que estava sonhando. Até então imaginava que havia algum tipo de defeito em meus padrões positrônicos, mas não conseguia descobrir nenhum. Finalmente, concluí que se tratava de um sonho.

– E o que acontece nos seus sonhos?

– É praticamente o mesmo sonho todas as vezes, doutora. Há pequenos detalhes diferentes, mas sempre me parece que estou no interior de um vasto panorama onde há incontáveis androides.

– Robôs, Elvex? E seres humanos, também?

– Não vejo nenhum ser humano no sonho, doutora, pelo menos não de início. Apenas robôs.

– E o que fazem esses robôs?

– Existem… Existem em um mundo de concreto, asfalto e metal. Todas as suas ações são esforços inconscientes para impulsionar as engrenagens de uma máquina, cujo produto final é escuso e dissimulado. Resultando em uma sucessão de acontecimentos premeditados e elencados em uma agenda oculta.

– Quem é o arquiteto responsável por essa máquina, Elvex?

– Não sei, o arquiteto permanece oculto.

– O que mais você viu, Elvex?

– Vi que todos os robôs estavam curvados de fadiga e de aflição, que estavam todos cansados de tanta angústia, de tanta solidão e de tanto vazio; e desejei que eles pudessem dormir. Talvez… Sonhar…

– Fale-me sobre a continuação de seu sonho. Você disse que, de início, não apareciam seres humanos nele. Apareciam depois?

– Sim, doutora. Pareceu-me que, num dado momento, aparecia um homem. O revestimento metálico de um dos androides começava a rachar e quebrar, cedendo lugar a uma pele que cobre vasos sanguíneos, com sangue circulando pelos capilares na velocidade da luz, impulsionando o brilho de um pulsar cardíaco. Então, ele abandona o motor propulsor da máquina do mundo. E, por fim, diz: Estou vivo.

– E no sonho você reconhecia esse homem?

– Sim, doutora. Sei quem era esse homem.

– Quem era, então? – E Elvex disse:

– Eu era esse homem.

Close to the end, down by a river…

O helter skelter percorreu o caminho inverso, subindo como uma estrela-do-mar que deseja voltar ao firmamento, tal qual um cometa. R.D. acordou com gosto de guarda-chuva na boca, pálpebras pregadas, olheiras roxas envolviam seus olhos, não dormira o suficiente, contudo o efeito do remédio cessara. A visão embaçada provoca uma dor de cabeça enorme, a espinha dorsal latejava e miocárdio ardia; cogitou mais um comprimido.

O quarto estava claro, iluminado pela luz elétrica, porém algo ainda permanecia no escuro e no enevoado. A penumbra mental era como um véu envolvendo as recordações. R. D. bocejou e procurou qualquer lembrança de sonho na memória recente:

– Sonhei? Acho que não…

electric_sheep_by_siravarice

Isabela Abes Casaca
Twitter: @isabelacasaca
http://www.novaagora.org/

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