[Crônica] O Poder do Olhar – por Isabela Abes Casaca

Seria cobaia de uma pesquisa científica, ainda não sabia direito por qual razão topara esse experimento, tal pergunta martelava em seu cérebro: Porque me subordinar a uma condição homóloga a de um camundongo de laboratório? Permanecia imerso em seu raciocínio, enquanto isso o pesquisador de jaleco branco, o conduzia por um corredor estreito, conferindo dados em uma prancheta.


Então o cientista abriu uma porta, dando entrada para um cubículo, uma pequena salinha de paredes branquíssimas, sem nenhuma janela, climatizada artificialmente por um ar condicionado central, no centro do ambiente haviam duas cadeiras.

– Você já pode sentar se quiser… – começou a falar – A outra pessoa que participará do experimento está um pouco atrasada, mas não demorará. É… – deu uma breve pausa e bateu com a caneta na prancheta – Ah sim! O experimento será monitorado por algumas câmeras instaladas nesta sala… – novamente silenciou, observou o relógio – Acho que é isso, o resto explicarei quando a outra pessoa chegar. Com licença… – dito isto, retirou-se.

A cobaia nº1 examinou a salinha, procurou identificar as câmeras, achou algumas, todavia não estava bem certa de ter encontrado todas. Sentou-se, a cadeira era bem confortável, deixou sua imaginação trabalhar, entrando num longo devaneio sobre coisas triviais. Passados alguns minutos o cientista retornou com a cobaia nº2.

– Bom como dizia, vocês serão monitorados por algumas câmeras de vídeo nessa sala, existem também dois microfones para captar algo que eventualmente digam, ou algum som espontaneamente emitido. Mas, friso que o detalhe mais importante é vocês olharam-se nos olhos ininterruptamente… Essa é a essência da experiência… – preencheu algo na prancheta – Antes de começarmos, preciso que vocês assinem esses documentos dizendo que aceitam participar, e também que permitem o uso e divulgação dos dados coletados aqui. – Entregou o papel e as cobaias que assinaram – Um sinal sonoro avisara-los quando a experiência terminar. – retirou-se e fechou a porta, deixando ambos a sós.

As cobaias olharam-se de relance pela primeira vez, a reação espontânea a princípio foi desviarem os olhares para o chão desconcertados. O instantâneo raciocínio mental da primeira cobaia foi o seguinte:

– Que tolice… O que isso quer demonstrar? – resmungou cerebralmente.

A nº2 por sua vez coçou a cabeça e arriscou:

– Acho nós precisamos nos olharmos né? – deu um riso sem graça.

– É… – receosa a cobaia nº1 ergueu os olhos em direção face de sua dupla, que como um espelho fez o mesmo movimento, lentamente volveram o mirar para suas respectivas órbitas oculares, para dentro da íris e da pupila. A primeira sensação foi a estranheza e o embraço, ambos tiveram que se esforçar para permanecer olhando-se. Transcorrido um minuto, cantarolando surgiu uma voz nos pensamentos conscientes da primeira cobaia:

Y asi nos reconocemos por el lejano mirar…

Era como se entrasse numa espécie de transe hipnótico, nº1 sentia-se diferente, alguma mensagem guardada no inconsciente estava emergindo até sua consciência, não havia modo de parar o mistério que estava se iniciando. O cubículo que antes parecia tão pequeno, ganhava uma amplidão inexplicável, a visão periférica o deixava parecido com uma imensidão branca. Outra voz cantou dentro dos pensamentos da primeira cobaia:

Em volta do fogo todo mundo abrindo o jogo com tudo que tem pra contar, casos e desejos coisas dessa vida e da outra, mas nada de assustar… Quem não é sincero sai da brincadeira correndo pois pode se queimar…

Naquele instante parecia que estava adentrando um sonho, o ar se preencheu com uma espécie de onirismo, porém um onirismo pleno de lucidez. As cobaias se fitavam como se os olhos fossem caleidoscópios transcendentais, a íris e a pupila mais pareciam mandalas, não era mais possível distinguir a cor dos olhos, seriam castanhos, verdes, dourados, azuis? Novamente uma voz interior cantarolou:

Se você quiser eu danço com você, meu nome é nuvem, pó, poeira, movimento, o meu nome é nuvem, ventania, flor de vento, eu danço com você o que você dançar… Se você deixar o coração bater sem medo… Eu vivo em qualquer parte de seu coração…

Sentiam entre si uma inexplicável simpatia, quem sabe até uma invisível sintonia, ou ainda uma misteriosa sinastria. Aquilo que antes era constrangedor converteu-se numa atividade extremamente agradável, poderiam permanecer olhando-se por muito tempo, nº1 e nº2 sentiam como se compartilhasse os pensamentos e sentimentos, sorrisos tímidos e faces ruborizadas despontavam nos semblantes. Outra vez o cantarolar se manifestou:

Amor, meu grande amor, não chegue na hora marcada, assim como as canções, como as paixões e as palavras… Me veja nos seus olhos, na minha cara lavada, me venha sem saber se sou fogo ou se sou água… Amor, meu grande amor, me chegue assim bem de repente, sem nome ou sobrenome, sem sentir o que não sente… E quando eu te encontrar, meu grande amor me reconheça…

Os olhos de ambos marejaram, estavam despindo suas carapaças emocionais, estavam descendo a montanha gélida da altivez e da solidão, apreciando as delícias do silencio compartilhando. A cobaia nº1 moveu os lábios lentamente como se quisesse dizer algo, a pupila da nº2 dilatou e ela inclinou-se levemente para frente, a fim de ouvir, subitamente um sinal sonoro encheu o ar, ambos saíram de seus estados alterados de consciência, ficando um pouco desnorteados.

A segunda cobaia tentou balbuciar alguma coisa, porém os únicos sons emitidos foram onomatopeias sem nenhum sentido, a porta se abriu, o cientista adentrou na sala com passos mansos, observando minuciosamente os dois indivíduos, eles lentamente voltaram suas faces para o pesquisador, assim ele começou a falar:

– A experiência terminou, nós vamos entrevista-los separadamente, será breve. Depois disso estão liberados… – as cobaias levantaram-se lentamente, caminhando em direção a porta, do lado de fora havia um grupo de pesquisadores aguardando, cada um foi levado em direções opostas, contudo enquanto distanciavam-se viravam suas cabeças para se olharem, mesmo que a distância, relutavam em se afastarem.

Então a cobaia nº2 contrariando o protocolo num impulso abandonou o círculo dos cientistas e caminhou acelerado em direção a nº1, quando a alcançou se apresentou:

– Meu nome é Jim… – revelou seu nome.

– Sou Iasmin… – respondeu a cobaia nº1.

Agora não eram mais duas cobaias, mas sim duas pessoas, dois espíritos e dois corações em contato com o outro. E quem diria que aquela teoria que propõem que se duas pessoas se olham por quatro minutos ininterruptos tem chance de apaixonarem tinha alguma essência de verdade.

Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão?

JF_KaleidoscopeEyes

Artigo anteriorO Amazonas negocia financiamento de projetos com o Banco Mundial
Próximo artigoShow Cultural 5ª edição

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui