Uma emissora de rádio anunciava: “autoridades públicas do Brasil querem trazer índios isolados para a civilização”. Pensei e me questionei: o que a nossa sociedade tem a oferecê-los? Olhei para fora do carro e, enquanto dirigia, enumerei o que via: pessoas em apartamento gradeados; famílias pedindo esmolas no trânsito engarrafado; motoristas gritando palavrões; avistei placas de outdoors que alertavam sobre o crescimento do suicídio e da violência contra mulheres e crianças; pedestres com máscaras sem poder abraçar o seu próximo; passageiros de ônibus sendo transportados feito sardinhas em lata; numa esquina, um homem mercantilizava a religião, do outro lado da via, um político fazendo promessas vãs.
Ora, os povos indígenas “isolados” ou distantes da nossa “civilização” não são seres perfeitos e nem vivem num paraíso. Como toda organização social humana, possuem hierarquias, deuses da bondade e do medo, normas naturais e controles sociais tradicionais, troca de comidas, líderes e divisões do trabalho, remédios doces e amargos, meios de transportes, armas de proteção e de caça, castigos para quem desobedecer, formas de habitações, ensinam crianças, matam animais e fazem rituais com bebidas até para conversar com o transcendental.
A nossa “civilização” também não é perfeita e nem caminha para o paraíso. Possui normas sociais escritas e por tradição, deuses para cada dia do ano e para cada causa, vários modais de transportes, modelos de habitações, divisões do trabalho, mata-se animais, possui dirigentes, remédios sofisticados, vestimentas coloridas de infinitos tecidos, armas cortantes e de fogo, castigos leves e severos, meio ambiente diverso, crianças para ensinar, muita bebida com sabores diferentes e muitas selvas chamadas de cidade, com variedades de nomes e origens.
Mas há muitas diferenças entre a nossa cultura e a deles. A nossa é movida pelo capital. Tudo vira comércio: do sexo até a religião. O trabalho aprisiona, alimenta-se quem tem dinheiro e o meio ambiente saudável é inimigo. Muitos animais são mortos por diversão, punições são para poucos e os dirigentes acumulam riquezas. Nas selvas de pedras, o grande predador do ser humano é o próprio homem, nem as crianças escapam. Na deles, o trabalho e as trocas de alimentos não aprisionam e nem a fé tem valor monetário. O meio ambiente é parte de suas vidas e a comida é pra quem está vivo e as crianças são ensinadas sobre o valor do coletivo, além de respeitar o meio ambiente.
No Brasil, nos últimos 500 anos, os povos indígenas fizeram inúmeros contatos com a nossa “civilização” e, alguns estão vivendo nela, trazidos pela promessa de amizade e até por ganhos financeiros. Muitos continuam isolados, na selva; e outros, passaram da condição de indígenas a indigentes das periferias nas cidades, habitando em favelas ou vivem em lugares insalubres financiados pelo Poder Público, alcançados ainda por religiões que oferecem o paraíso em troca de doações monetárias.
Acredito que não temos muito para ensinar aos povos “isolados”. Mas a partir deles temos muito a refletir sobre o nosso modelo de sociedade. Nessa relação entre distintos modelos sociais humanos, certamente, os indígenas têm mais a ensinar aos “civilizados”.
Carlos Santiago é Sociólogo, Analista Político e Advogado.