Haitianos refugiados em Manaus começam a trazer os filhos para o país

Haitianos na escola Waldir Garcia, em Manaus/Foto: Natália Lucas
Haitianos na escola Waldir Garcia, em Manaus/Foto: Natália Lucas
Haitianos Joseph e Rosalina, na escola de avaliação, em Manaus/Foto: Natália Lucas
Haitianos Joseph e Rosalina, na escola de avaliação, em Manaus/Foto: Natália Lucas

Passados quase cinco anos do terremoto que devastou o Haiti, em janeiro de 2010, os haitianos refugiados no Brasil começam a dar os primeiros passos para a estabilidade. Dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) apontam que entre 2010 e 2014, em Manaus, foram expedidas 9.016 Carteiras de Trabalho para haitianos. Na época do desastre, os homens vieram para o Brasil, deixando para trás mulheres e filhos. Agora, com emprego, começam a trazer suas famílias.
Kendia Saloman, de 9 anos, chegou a Manaus em agosto de 2013. O pai foi o primeiro da família a sair do Haiti, ainda em 2011, e somente dois anos depois conseguiu trazer a mulher e as duas filhas. No Haiti, ainda estão dois irmãos, que só devem chegar ao Brasil em 2015. Em Manaus, Kendia passou a frequentar a escola este ano. A rede municipal de ensino, segundo informações da Secretaria municipal de Educação (Semed), tem 77 haitianos matriculados. A secretaria, segundo a coordenadora de Diversidade da Semed, Lídia Helena Mendes, passou a receber as crianças estrangeiras no fim de 2013.


Kendia estuda na Escola Municipal Waldir Garcia, no bairro São Geraldo. É a unidade que abriga o maior número de haitianos: 16. Todos chegaram a Manaus falando apenas o crioulo e, de acordo com a gestora Lúcia Cristina Santos, foi preciso muito esforço para que se adaptassem:

— É um grande desafio para eles e para a escola, uma vez que não falam o nosso idioma e nós não falamos o deles. O processo de alfabetização é desafiador. No início, a gente utiliza a mímica, partindo do trabalho de assimilação de objetivos, para que eles aprendam palavras do cotidiano como bebedouro, banheiro, água, por exemplo. Só depois disso, quando estabelecemos um contato básico, é que damos início à alfabetização, pelas vogais, consoantes, sílabas e palavras para, assim, chegarmos à leitura e à escrita.

Apesar das dificuldades com o idioma, o esforço e a dedicação das crianças chamam a atenção da gestora e dos professores. Lúcia destaca que o nível de aprendizagem é mais avançado do que os dos demais alunos da rede.

— A gente observa que eles têm muita facilidade na aprendizagem. Estão muito abertos a aprender uma nova língua e conseguem assimilar muito mais rápido. Outra coisa é integração com as outras crianças. Essa troca, essa interação tem ajudado muito no processo de aprendizagem, e muitos alunos haitianos têm se destacado na escola — diz.

Kendia já consegue se comunicar em português sem dificuldades e repassa para os pais o que aprende na escola.

— Eu sei falar melhor do que eles e até consigo ler livros em português. Não gosto muito de ler, mas tem que ler para falar com as pessoas e ser entendida — diz a menina, completando: — Meus pais não falam muito bem. Ainda têm dificuldades, mas não têm tempo para estudar. Eles precisam trabalhar.

O aprendizado das crianças haitianas chamou a atenção na Avaliação do Desempenho Escolar (ADE). Aplicada em novembro, em todas as escolas da rede pela Secretaria de Educação do Município, a ADE serve como instrumento de mensuração do nível de aprendizagem de cada escola. Das oito turmas da escola Waldir Garcia, duas tiveram alunos haitianos em primeiro lugar na avaliação.

Rosalina Medeiros, de 9 anos, estuda há um ano na escola e foi o destaque da turma onde é a única haitiana.

— A gente se surpreende com o nível de aprendizagem deles. Crianças que ainda estão em processo de alfabetização e que começaram este ano já se destacam. A Rosalina é uma delas — diz Lúcia.

Aos 12 anos, Daivid Elisson também chama a atenção: fala quatro idiomas — espanhol, crioulo, francês e português — e serve de intérprete para os novos alunos que chegam do Haiti e até da Venezuela.

— Eles aprendem muito rápido e muitos já chegam falando dois ou três idiomas. Certamente, elas terão um futuro diferente do dos pais e vão se destacar no mercado de trabalho. Em um estado como o nosso, com potencial turístico, vão ser facilmente absorvidos nos postos de trabalho — diz Lúcia.

PROBLEMAS DE CONVÍVIO

Mas o trabalho desenvolvido na rede pública vai além da alfabetização. Lúcia conta que muitas crianças chegam apresentando problemas de convívio.

— Muitas crianças ficaram no Haiti sem o pai e sem a mãe, sendo cuidadas por terceiros. Então, algumas chegam agressivas, arredias. Tem quem chegue até a bater nos professores. São crianças que muitas vezes ficaram sem limites, sem regras — conta Lúcia: — Nosso papel, então, é também trabalhar essa questão da disciplina, do convívio com os professores e os colegas e a questão do respeito.

Por conta disso, o trabalho na escola conta ainda com a participação dos pais. Segundo Lúcia, por passarem muito tempo longe dos filhos — alguns ficaram até quatro anos longe —, eles se sentem culpados e, assim, tentam compensar a distância com mimo:

— É preciso um trabalho intenso com pais e filhos. Muitos estão com saudades dos filhos e não corrigem certos comportamentos como forma de recuperar o tempo perdido. Então, na escola, temos que mostrar que a distância não é culpa dos pais e que a disciplina é necessária para trazer as crianças ao convívio de outras pessoas que possuem costumes diferentes dos deles.

Caçula da turma, Joseph Mathias Jean Orinel, de 4 anos, foi deixado pelos pais no Haiti com apenas 2 anos.

— Tivemos que dar uma atenção especial. Ele chegou este ano sem saber uma palavra em português, completamente arredio e agressivo. Agora, com a ajuda dos pais, ele já sabe que tem horário para o lanche, o almoço, para fazer a tarefa e até para as atividades em grupo — lembra Lúcia.

TRABALHO SEM CARTEIRA ASSINADA

Ainda que muitos haitianos já tenham conseguido levar a família para Manaus, outros tantos ainda precisam de ajuda para se reerguer. A ONG Ama Haiti, criada em 2011, abriga, numa casa de três andares, no bairro Parque das Laranjeiras, 40 homens, a maioria recém-chegada do Haiti. Mas Pierre Faner, de 57 anos, está em Manaus desde setembro de 2013 e ainda tem dificuldades para se comunicar em português. Seu último trabalho foi como pedreiro numa construtora que revitalizou e ampliou as calçadas ao redor do estádio Arena da Amazônia, um dos palcos da Copa do Mundo.

— Fiz as calçadas, ganhei sem carteira assinada — lembra Faner.

Coordenador do projeto da ONG, Michael Pessoa conta que a maior dificuldade dos haitianos é conseguir emprego dentro das leis trabalhistas:

— Os patrões querem contratar avulso, sem assinar a carteira deles, apesar de todos estarem com a documentação regularizada e aptos a ter a Carteira de Trabalho assinada. Assim, há os que preferem trabalhar como autônomo, vendendo picolé, por exemplo, do que trabalhar sem carteira assinada, sem segurança.(Jornal O Globo)

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