Mentiras conceituais – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

Existem conceituações que dependente da opinião, em muitos casos, desemboca num estuário de non sense e surrealismo. Entre as conceituações equívocas existem, inclusive, aquelas que se acham institucionalizadas, petrificadas, o que torna extremamente difícil a sua correção, para que fiquem nos trilhos da racionalidade e da lógica. Vejamos o caso exemplar do conceito de salário mínimo. O fato de estar inscrito na Constituição, com todas as características imaginadas pelo legislador, potencializa e aprofunda as visões obscurecidas desse mecanismo de justiça social nascido com as melhores intenções. O resultado é que muita gente supõe que o salário mínimo seja na verdade uma espécie de salário máximo.


A Constituição de 88, repetindo as definições já existentes sobre o problema, não conseguiu deixar bem claro que se trata no caso de um nível de remuneração trabalhista no seu último limite abaixo do qual nada pode ser pago ao assalariado formal. Como somos, entretanto, um país basicamente pobre, fez-se inevitável a generalização de uma mão-de-obra remunerada pelo que o empregador poderia pagar nas menores proporções com anuência do Estado e da Justiça. Por sua vez os cofres governamentais e previdenciários ficariam também envolvidos pelo imperativo do rebaixamento do quanto do salário mínimo, tendo em vista o impacto transmitido às folhas de pagamento do pessoal ativo e inativo das administrações federal, estaduais e municipais.

Nada é mais inusitado no Brasil do que o nível de salário mínimo estabelecido a cada ano. O do ano que vem vai aumentar 22,00 isso mesmo vinte e dois reais passando para 1.067,00. Dele se diz comumente que é uma vergonha, uma indecência, uma indignidade, e pululam as comparações com os valores adotados na matéria pelos países ricos ou mais adiantados do que o nosso, onde continua havendo uma população faminta calculada em 30, 40 milhões de habitantes.

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Consultor.

São evidentemente comparações, vazias de todo o fundamento e que só denunciam desinformação e ausência do senso de medida de quem usa tais argumentos. Mas vejamos o que diz a Constituição de 88 no inciso IV: o salário mínimo deve atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, ‘‘como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social’’. Poderia haver dispositivo constitucional mais delirante em face da realidade econômica e social do Brasil do nosso tempo? E então se converte num jogo de faz-de-conta discutir de 20, 50, 100, 200 reais por acaso acrescentado ao salário mínimo vigente em cada ano, teriam condições de atribuir ao assalariado de tão escassa remuneração o poder aquisitivo capaz de satisfazer a todas as necessidades enumeradas na Carta Magna. E nos lembremos de que ali se fala não apenas nas exigências do bem-estar social do trabalhador individualmente. Fala-se nele e na sua família não importa de quantos membros ela se constitui.

O conceito de discriminação racial é outro que entre nós sofre múltiplas variações de avaliação, inclusive mantendo alguns pontos de vista já defasados, pois é claro que a discriminação ainda sobrevive, mas sem a abrangência e o rigor que muitos ainda pretendem identificar no nosso cotidiano. Por exemplo, fala-se muito nas desigualdades de tratamento salarial da mão-de-obra branca e negra chegando as denúncias a respeito a fixarem os percentuais do injusto diferencial. Ora essa generalização é falaciosa ou ao menos extremamente simplista, tanto mais quando se refere a trabalhadores e funcionários que exercem cargos ou funções iguais e têm a mesma responsabilidade exigida pelos serviços que prestam.

Na administração pública a hipótese discriminatória pelo preconceito de cor é inviável dada a estrutura burocrática cristalizada e isonômica de funções e vencimentos do sistema. Na iniciativa privada qualquer discriminação justificaria uma reclamação trabalhista e fácil incriminação de racismo, já capitulado como crime inafiançável. O que existe, na verdade, é a dificuldade maior de acesso do negro à verticalização salarial, por motivos que nada têm de preconceituosos. Trata-se de um processo que vem de longe, na história da evolução política, social e cultural do Brasil.

A vasta maioria da população afrodescendente ainda purga as consequências perversas das iniquidades sociais herdadas da escravatura, cuja tardia abolição apenas lhes tirou os grilhões mas os deixou condenados a um longo período de pobreza, marginalização, exclusões de todo o tipo, enfim de bloqueio às instâncias do conhecimento e da qualificação profissional. No imenso mercado de trabalho doméstico do Rio e de outras cidades brasileiras, quem conhece a prática de salários diferenciados pelo critério da cor da pele? De problemático só existe a difícil conquista do empregado adequado, pouco importando o seu perfil racial. Na experiência em curso em algumas universidades, envolvendo a distribuição de vagas de acesso segundo um sistema de cotas de vestibulandos negros e pardos, ocorreu algo de surpreendente para quem vê cores radicais no cenário da nossa discriminação racial. Estudantes brancos tentaram passar por pardos e até mesmo por negros (alegando ascendência familiar mestiça) para obterem prioridade e vantagem no julgamento dos exames do curso superior. É o brasileiro se mostrando mais pragmático e esperto do que racista.

 

 

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