Natal do Pedrinho – por Osíris Silva

O Natal do Pedrinho, a partir daquele instante torna-se eterno/Divulgação

A lua se arrastava abandonando seu posto na noite estrelada. Ao nascer de um novo dia os raios do sol tomavam-lhe o lugar. Determinavam que novo ciclo da vida se iniciava. O mundo gira, gira, a noite sucedendo o dia, o dia alternando-se com os mistérios insondáveis da noite. Esperanças que nascem, fenecem e rebrotam nos corações e mentes da gente.


Assim decorrem anos. Vêm e vão primaveras, outonos, verões, invernos, os Natais e os dealbares de Novos Anos, que se sucedem infinitamente. O fato concreto é que a lua, no seu curso solitário, desfalecia-se, cansada. As estrelas apagavam-se aos poucos, lentamente, irresistíveis ao brilho forte do sol.

Ao longe, melodias de uma canção indecifrável chegavam-lhe aos ouvidos, mas a elas não dispensava qualquer atenção. Seu pensamento estava em outra direção. O tremular de um coração aflito acompanhava, sonolento, o curso irreversível dos astros, comandando a vida. Era meado de dezembro.

Por isso veio-me à mente passagens de “São Bernardo”, em que Graciliano Ramos discorre sobre a natureza de um certo amanhecer, referindo-se aos paus-d’arco que ainda se encontravam floridos, e que salpicavam a mata de pétalas amarelas. Em que os igarapés, depois das trovoadas e das primeiras chuvas do inverno, que chegam célere, “cantam grosso”, procurando, em velocidade acelerada decorrente da chegada das águas da nova cheia, enfeitados de espuma, imitar o rio.

De manhã cedo, – ah Graciliano ! -, a mata “cachimbava”, aspergindo nuvem de poeira pelo topo do arvoredo arredio”.

Lúcida convicção fortalecia seu sentimento, o de um garoto de 10 anos apenas, de que não permaneceria só e ao desamparo naqueles dias próximos ao Natal. Algo de bom estava para acontecer. Mas não chegou a ser categórico quanto ao que poderia ou não suceder. Sua alma relutava, atingida por aquela pontada de incerteza própria do ser humano.

– Pedrinho, levante-se. Está na hora do banho.

Embora sonolento, acedeu de imediato. Habituara-se prazerosamente àquela rotina. Foi ao banheiro, depois vestiu-se, calçou seu tênis e dirigiu-se à sala de refeições. Após o café da manhã foi avisado de que tinha visita. Ele logo pensou:

-Visita? Quem poderia ser?

Sozinho na vida, havia sido deixado no Orfanato para adoção em tenra idade. Ali crescia, desenvolvia sua vida habituando-se à movimentação do dia a dia – aulas, refeições, práticas de esporte, pelada com os colegas – e às noites sem fim, solitárias e frias. Os momentos em que mais pensava em sua mãe, em seu pai, se é que realmente os tinha. Nos anos em que morava na instituição jamais havia sido procurado por qualquer parente ou aderente. Sim, não tinha ninguém, vivia sozinho no mundo. Isso era coisa definitiva.

A mesma segurança de sentimento o induzia a confiar na comunidade em que vivia, nos professores e colegas; nas Irmãs de caridade, responsáveis e administradores da instituição, nos benfeitores – grupo de pessoas que ajudavam a manter a Casa e que ali faziam visitas habituais.

Naquela manhã, uma semana antes do Natal, disse-lhe a Irmã Alda, diretora do Orfanato:
– Sente-se, Pedrinho, acrescentando: – A Sra. Joana Almeida, de quem você tanto gosta, vai conversar com você. Ela tem novidades. Você vai gostar.

Sorriso meio trêmulo, aguardou. No íntimo, pensando: – Não falei? Alguma coisa estava para acontecer.

– Olá Pedrinho, bom dia!

A Sra. Joana Almeida, meia-idade, vestia-se com desprendimento. Cabelos grisalhos tocavam-lhe os ombros estreitos e harmoniosos com seus braços, colo e a cintura elegantes. Olhar sereno, direto, emerso de um rosto que infunde confiança. Era bonita e lhe sorria com bondade. Sem afetação. Trazia uma sacola à mão, que a depositou ao lado de sua cadeira ao sentar-se.

– Vim visitar você. Soube que foi muito bem nas provas.
– A senhora trouxe presente?
– Do que você mais gosta de fazer? Ler, fazer contas, jogar bola?.
– De fazer contas, respondeu sem pestanejar. – Depois de jogar bola. Jogo no gol.
– Que maravilha, Pedrinho! – disse ela, satisfeita.

Alguém entrou na pequena sala de visitas para cumprimentar a Sra. Joana. Em seguida, passando a mão sobre sua cabeça, carinhosamente, informou que Pedrinho havia passado nos exames finais com boas notas. Havia sido promovido à quarta série.

– Vou ser médico, quando crescer, disse Pedrinho com desenvoltura.
– Ótimo, disse a Sra. Joana. Em seguida, apertou-lhe as mãos, parabenizando-o por sua decisão.
– Quero ser médico para curar crianças doentes como eu, ele disse.
– Ah! Sim. Com certeza. Deus haverá de ajudá-lo, meu filho, disse a Sra. Joana.
– Não vou deixar nenhuma criança morrer de câncer. Nem sentir dor – disse Pedrinho, sorriso confiante.

Foi então que percebeu que aquela sua afirmativa toldara o sorriso da Sra. Joana, e observou lágrimas rolarem por sobre aquele rosto que inspirava fé e bondade. Sentindo-se culpado, partiu em sua direção para abraçá-la, mesmo sem saber como expressar seu contentamento e gratidão. Não foi preciso. Ela entendeu perfeitamente seu gesto.

– Pedrinho, trouxe-lhe esta sacola com algumas roupas, um tênis, e uns brinquedos. – São seus presentes de Natal – a Sra. Joana disse.

Ele, feliz, sem dizer palavras, novamente lançou-se aos seus braços, agradecido, beijando-lhe o rosto.
– Muito obrigado!
– Vá, divirta-se, Pedrinho. – disse a Sra. Joana, complementando: – não esqueça de estudar cada vez mais. É importante. Você vai ser médico. Muitas crianças doentes esperam por você.

Naquele instante o semblante de Pedrinho foi se modificando, crispando-se de dor pouco a pouco. A ambulância o conduziu de imediato ao hospital, onde deu entrada no setor de emergência. Em seguida, os procedimentos padrões aplicáveis em pacientes naquele estado.

Resignadamente, manteve-se calmo e esperançoso em mais um milagre. Milagres que o vinham mantendo vivo há quase 10 anos. Seu câncer, do intestino, já migrara para os demais órgãos da caixa abdominal. Os tratamentos que vinham sendo-lhe ministrados nos últimos meses já começavam a tornar-se paliativo tal a agressividade e a virulência do tumor.

Irmã Alda e a Sra. Joana a tudo acompanhavam da antessala, onde foram-lhes recomendado permanecer aguardando o desenrolar dos fatos. Sofriam, como nas crises anteriores, em que Pedrinho conseguira superá-las graças ao auxílio divino, à perícia e ao amor que o Dr. João Alberto dispensava àqueles pequenos e indefesos pacientes.

Pedrinho, ali, imobilizado, não conseguia lembrar-se de qualquer coisa, presente ou passada. Em estado de semi-inconsciência sentia que a vida se lhe apagava, fluía além de seu ser, deixava de vez aquele pequeno corpo frágil e solitário. Irmã Alda e a Sra. Joana foram chamadas para receber o boletim médico daquele momento.

Num átimo, ainda chegou a ver aqueles rostos pálidos e aflitos. Nada mais além disso.

Foi quando, então, o silêncio e a escuridão absoluta o invadiram. Logo começou a perder progressivamente a capacidade de percepção de seus sentimentos. Nesse meio tempo um clarão resplandecente surgiu diante de seus olhos. Passou a conduzi-lo por uma trilha que lhe era totalmente desconhecida, em tudo diferente dos caminhos habituais. À medida que começava a percorrê-la, entretanto, tornava-se familiar, repousante, perfume floral intenso, cheia de paz e serenidade.

O Natal do Pedrinho, a partir daquele instante torna-se eterno.

Osíris M. Araújo da Silva

Manaus, Natal de 2018.

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