Os telhados – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

Distancio-me no tempo, penetro no túnel das lembranças, são muitas as saudades de Manaus. Dos pregões dos vendedores ambulantes – quem não recorda de “chá preto e pente?” –, dos quintais sonolentos, a exalarem o halo das deliciosas assombrações, das cadeiras à rua, após o jantar, formando um círculo de conversa: o falar miúdo das horas de descontração, forma amena de preparar o corpo e a mente para o dormir. Além da aragem noturna que refrescava o ritual do sono, selavam-se, nesses conluios espontâneos, alianças de amizade. Proximidade. Convívio. Partilha. O saudável bate-papo se estendia até nove horas da noite, quando os vizinhos se despediam dos ainda perenes arquejos rurais.


Guardo um certo amor pelo passado, não duvido desse sentimento. Guardo principalmente a devoção pelas relações humanas, pela solidariedade vicinal, pelo ar bucólico que Manaus até então preservava. Mas o mundo mudou, e mudou muito. Entre o céu e a terra, os telhados se foram. Destruíram-nos.

As ruas perderam a liturgia das casas. As vendas com cadernetas de pagamento ao mês não sobreviveram, o farfalhar das árvores emudeceu… o cheiro da terra molhada, nem a terra se expõe à nudez completa. E as mangueiras senhoriais com deliciosos frutos e os jardins à frente da moradia e os ruídos indecisos dos fundos de quintal? O impressionismo da belle époque vem se corporificando em desenhos concretos e não difusos.

O que se vê é a ânsia do atualismo e a superficialidade do imediatismo. Na figuração do quadro de ontem, um tanto misterioso, os telhados serviam de proteção às nossas vagarosas fantasias. Neles a chuva deslizava com a sua batida sonora, às vezes contraditoriamente aguardada e temida. Ainda ouço os grandes temporais em que me resguardava debaixo de grossas mantas, engendrando histórias do arco-da-velha. A responsabilidade dos telhados nessas ocasiões ganhava a dignidade merecida. E sob a sua guarida, arquitetei o sonho das noites de inverno.

Cultivo uma forte relação com a terra, com a casa, com os quintais, com os telhados. O chão me acolhe na sua gênese, os telhados definem os meus limites para o alto, os quintais prorrogam a liberdade, a casa acentua côncavas emoções. No universo do morar, hábito com intensidade e reforço os quereres porque asseguro-me nos frontispícios da clausura. Faço parte de uma geração que patina em tempos quebradiços. A celeridade da tecnologia nubla o passado, há, todavia, um sentido de origem que se crava na memória com lacres indeléveis.

Jamais desejei olvidar a história que me cercou. Conto e reconto os longes e não posso abandonar a herança dos enigmáticos telhados. Foram eles que me hospedaram e me firmaram confianças que até hoje alento. Gosto de estar em casa e de estabelecer com o mobiliário elos afetivos. Os aparadores, a mesa de jantar, a cristaleira… são pedaços de mim que se projetam em matéria inanimada. Apalpo-os com a certeza de que eles me ouvem e me entendem, sobretudo me acumpliciam em estados de alegria e tristeza, confidentes insubstituíveis.

As cidades começam pelos telhados. Aos poucos, vão se apinhando em ruas, bairros, vilas, distritos, municípios… Nos idos outros, olhava para cima e divisava as telhas vermelhas que se juntavam entre si para aconchegar aos que a elas rogavam por abrigo. Telhados altos, outros, mais baixos, alguns, aristocráticos, a maioria, edificados em estilos que representavam o status dos seus habitantes. Por onde andam os telhados que levaram pintores a lematizá-los em belos quadros? Em decadência, sem o garbo que os nobilitou, já não se alinham numa telúrica arquitetura. Acanhados, quase escondidos, hoje pedem licença aos espigões residenciais, esses imponentes, verticais, indiferentes.

Os sussurros noturnos se esvaíram, porque a cidade cresceu e usurpou as assombrações que jorravam dos velhos telhados. A modernidade não conserva o imaginário do homem. Nubla a cortina do fascínio, exalta a racionalidade, destrói o desejo das idealizações míticas. Somos tão iguais nesse mundo de iguais que prevalece a linha de montagem, produtos similares, diferenciados apenas pelo controle de qualidade: para mais ou para menos. A cidade incha com modelos superpostos, moradias amontoadas, umas em cima das outras – até a chamada cobertura. E os meus olhos quase não avistam telhados. Hoje moro em um edifício alto, decimo quarto andar, só vejo prédios. Os que restam se encolhem na timidez de uma existência precária. Relíquias desprezadas.

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