Pitacos e Desabafos – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

Às vezes tenho ímpetos de chutar o pau da barraca, mandando às favas ideário, brasilidade e o nortedestinidade, em conjunturas onde a ética se encontra escamoteada até por alguns mandatários que abrigam sogras em apartamentos funcionais. Mas logo volto a querer seguir adiante, quando releio Harold Kusher, Nilton Bonder, Paulo de Tarso, Rubem Alves e Paulo Freire, o primeiro sendo autor de uma reflexão-vacina: “Se o sentimento de nossa identidade depende da popularidade e da opinião que as outras pessoas têm de nós, estaremos sempre sujeitos a essas outras pessoas. A qualquer momento, elas poderão puxar o tapete sob nossos pés”.


Defino o ser humano como um ser histórico, situado e datado, muito embora nunca acabado, sentindo-se metamorfose ambulante, como dizia o baiano Raul Seixas. Ele não é apenas um ser no mundo, mas um ser em permanente interação com o mundo, modificando e sendo modificado, condutor e conduzido, mutante porque capaz de questionar e ser questionado.

Daí minha estupefação quando me deparo com pessoas de caráter amorfo, desejando ser boazinhas para com todos, olhos fixos nas vantagens, sempre adeptas das pompas bizarras e dos fingimentos porcalhões. De pouca envergadura cívica, elas não se apercebem do ensinado: “Não dê atenção a todas as palavras que o povo diz, caso contrário poderá ouvir o seu próprio servo falando mal de você, pois em seu coração você sabe que muitas vezes você também falou mal de outros”. (Ec,7,21). Usando a linguagem como espelho de sua própria historicidade, o ser humano a utiliza segundo diferenciados graus etários, níveis de renda e de escolaridade. Tudo tornando-se ópera bufa se as contradições sobrepujarem a sinceridade de um existir honesto.

O próprio rabino Kushner, que perdeu um filho de maneira dolorosa, assegura: “Não permita que coisa alguma – seu emprego, seu carro, nem mesmo sua saúde ou sua família – seja muito importante e você se imunizará contra o medo de perdê-la”. Os “critiquentos” não assimilam que a sua insistente sinfonia da negação pode se transformar numa degenerativa postura negativista, onde nada presta, nada do passado tem valor, todos buscando agir conforme seus próprios interesses e ambições. Num autofágico individualismo que menoscaba a individualidade, reduzindo todos a ninguém, posto que sem bons comandados os comandantes não evoluem, naufragando com muita facilidade no próprio charco por eles criados.

O homem eticamente comprometido com os amanhãs do Reino de Deus percebe que não é criador do futuro de todos. Sua consciência ressalta que ele é apenas aquele que age à luz de um futuro prometido, que seguramente advirá. A teologia pastoral, por exemplo, parte integrante de uma Igreja que deveria ser mais parteira da História, deveria ter como missão basilar, na manutenção da efetividade do seu caminhar, buscar uma nova linguagem, ainda que nunca se distanciando dos contextos diferenciados e muitas vezes opostos.

Caberia à Igreja habilitar-se na apreensibilidade de novos cenários, erradicando as inadequações que enfastiam e desacreditam, ensejando fundamentalismos que não levam na devida conta a irreversibilidade de uma pós-modernidade. A Esperança é porta-bandeira indispensável refletida no. pensar de Nilton Bonder, uma inteligência judaica privilegiada, também teólogo de nomeada: “Para podermos honrar a consciência e a experiência existencial, temos de conhecer a arte de pedir concordata para nosso empreendimento na dimensão da consciência. Esta concordata tem como parte de seu objetivo salvaguardar a própria consciência de uma possível falência, que representaria a alienação total. Esta concordata é comumente chamada de entrega”. Do citado Bonder, o final destes pitacos e desabafos: “Quem se permite experimentar uma pausa, acaba por encontrar uma.

Creio que quase nenhum escrevinhador de crônicas escapa de explorar, uma vez ou outra, algum período ou episódio da sua vida privada. Acho que nada há de presunçoso nisso, pois quem está acostumado a narrar e interpretar momentos ou eventos que acontecem por aí, buscando um significado ou uma graça que possam interessar ao leitor, encontra oportunamente em sua própria vivência uma matéria-prima ou peça semiacabada que se prestam para uma redação ponderada, possivelmente atraente para quem não frequenta a sua intimidade.

Manaus, década de 70. Escola pública, classes separadas de meninos e meninas. Esse menino aqui entrando no ginásio, criando novas amizades, os professores indagando o perfil familiar de cada aluno, servindo-lhes, geralmente, para fazer uma apologia da importância social da profissão do chefe-de-família, fosse ela humilde ou de status relevante. Até que chegou a minha vez. Eu já estava preparado para isso, sabendo que a descrição das atividades profissionais do pessoal lá de casa, por ser um tanto sui generis, provocaria estranheza no inquisidor e curiosidade por parte dos alunos meus colegas (a exceção de dois amigões, o filho de um Contador e o filho de um advogado, pois frequentávamos reciprocamente nossas residências para fazer as lições de casa).

O meu depoimento sucinto, mas que em seguida fui obrigado a estender um pouco, dizia que meu pai era portuário, e mas horas vagas brincava de marceneiro, minha mãe do lar, e meu avô materno– este sim, uma figura incomum, surpreendente – exercia uma profissão bem conhecida. Ele era bancário, e tocava violino como se fosse um encantador de serpentes. E eu como neto mais velho era tratado como compadre Flavinho, num chamamento carinhoso.Mas agora vou pular as indagações da classe e vou falar diretamente com o meu leitor.

Não há dúvida de que a composição cultural (vamos chamá-la assim) do meu pequeno núcleo familiar e, possivelmente, a herança de alguma combinação genética influenciaram bastante minha formação entre os meus 10 e 15 anos. Foi durante esse período que convivi com meu admirável avô, diferente dos avôs de qualquer outro menino que eu conhecesse, e que terminou em 1971 quando ele morreu. Pergunta óbvia: por que estou fazendo desse fato o tema de uma crônica? A quem pode interessar a narrativa dessa circunstância? Muito bem.

Vou tentar explicar, vou tentar passar o significado emocional e cultural dessa convivência apaixonada que aconteceu nos anos 600 do século 20 entre um pré-adolescente e um velho sábio que pertencia física e ideologicamente ao século 19. Isto é, entre um meninote que vivia sua contemporaneidade ao mesmo tempo em que mergulhava no universo de um intelectual que era talvez uma das últimas personalidades admiradas quase secretamente no seu tempo, que eram os eruditos em algum setor do conhecimento, gente capaz de dedicar uma vida inteira a um estudo muito específico para despejá-lo, então, no mundo acadêmico, abdicando de qualquer outra atividade que pudesse produzir alguma fama e popularidade. É isso aí.

Resumindo resumidissimamente a história, meu avô José Lauria, dedicou a vida toda a amealhar amizades e não deixava passar uma empregada domestica, passando longos períodos na brecha da janela da sua casa na Avenida Ayrão, observando o passar das moçoilas. Outros tantos períodos, ele passava no Banco Ultramarino, onde era escriturário. Italiano, adorava a macarronada que era feita por minha avó, e somente a macarronada sem outra guarnição. O leitor pode imaginar quantas situações aventurosas meu avô contava, relativas aos seus anos de vida na Itália, mas nada foi mais emocionante para mim do que examinar algumas reproduções de textos gravados naquela língua misteriosa, que mais pareciam composições de traços caligráficos criados para expressar harmonia e elegância. Decidi, então, copiar diligentemente numa prancha grande, uma espécie de alfabeto (na realidade, sinais que designam agrupamento de sons), tendo como referência uma pequena reprodução de má qualidade. Infelizmente, nas andanças da minha vida, aquela prancha se perdeu. Uma pena. Se hoje ela estivesse ainda comigo, a penduraria na frente da minha cama para, ao acordar de manhã, poder relembrar sempre os primeiros passos do longo caminho do conhecimento que, por modesto que seja, eu acredito ser o melhor iluminado para nos dar o prazer de viver.

 

 

Artigo anteriorEUA derrubam suposto balão espião chinês na Carolina do Norte
Próximo artigoVereadores estarão mais perto da população a partir de março

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui