
Há um tempo ouvi uma música andina nomeada Testigos Mudos del Tiempo, fiquei me perguntando o que seria isso…. O que aconteceu, o que acontece e o que acontecerá para que alguém seja uma testemunha silenciosa do tempo?
Dona Mirtes nasceu no ano de 1932, o mesmo ano da revolução constitucionalista de São Paulo, mas seu berço é longe demais das capitais, distante dos conflitos da República Velha, distante M.M.D.C., distante…
Sua raiz começou a nascer numa terra de nome indígena: Jaraguari (MS). Ela, muito bem informada, explica a origem desse nome: “Jaraguar” é tipo de capim que nasce na região e “I” pela fartura de águas.
Passou os dez primeiros anos de vida na cidadezinha do interior, sua brincadeira predileta era nadar um tanque de água, construído por seu pai para criar patos, gansos e marrecos. Eu lhe perguntei:
– É muito melhor que piscina né?– seus olhos brilharam e ela sem demora respondeu:
– Muito melhor! Não tem como comparar… Era água corrente…
Ela seguiu contando que seu pai não gostava que ela, os irmãos e irmãs fossem brincar na casa do vizinho, preferia que o vizinho viesse até a morada deles para os jogos. O motivo? O pai de Mirtes não queria que os filhos aprendessem fora de casa algo que não fosse do agrado dele.
Naquela tempo, as crianças e jovens tinham dois direitos: Respeitar e Obedecer. Já desde cedo aprendiam um trabalho para colaborar nos afazeres. Mirtes aprendeu a costurar, este foi seu ofício durante a vida, costurava de tudo, até vestido de noiva. A respeito da moda contemporânea ela declarou:
– Hoje em dia a beleza acabou…
No ano de 1942 mudou-se para Campo Grande (MS), fez questão de dizer que a segunda guerra ainda não havia findado, afinal a batalha contra o eixo só teve fim em 1945.
Nesta cidade vivenciou o resto da infância, a mocidade e a continuidade de sua história. Quando mocinha aprendeu a dançar, mas sempre sob a supervisão do zeloso pai, este tocava violão para a dança. Dançava com um rapaz chamado Domingos, cujo apelido era Cheiro. As festividades eram na Igrejinha de São Benedito, tinha sanfona, violão e violino pra embalar a noite.
Sua casa fez parte da primeira vila da capital sul-mato-grossense. A rua, hoje asfalta era um grande atoleiro no passado, passava boi, passava boiada. Um cenário digno de um poema de Guimarães Rosa.
“Eh boi!… Eh boi!… É gado magro, é gado bravo, que vem do sertão. E os cascos pesados, atropelados, vão martelando o chão na soltura sem fim…”
E o tempo não tem fim, nos traz outra história de uma flor de outro jardim…
Maria Verônica é baiana da cidade de Brumado, pertinho de Feira de Santana, vivia num pequeno sítio onde seu pai plantava alguns vegetais e exercia a profissão de tintureiro. Ao redor do terreno era mata, tinha onça braba nas redondezas, o responsável pelo espante era o valente cão de guarda Navegante.
Sua predileção era por brincar de índio. Pintar o rosto e improvisar um arco e flecha. O pai de Verônica chamava José, quando tinha um tempo livre ficava junto da filha olhando a natureza e cheio de respeito dizia:
– Está vendo essa natureza minha filha? Isto tudo é Deus… A natureza é Deus… – quando tinha tempestade e trovão, ela nem se assustava, se tranquilizava, pois lembrava das palavras do pai. A mãe de Maria chamava-se Laura, esta foi a única mulher de José em toda a vida, por ela nutria um sentimento de afeição, dedicação e fidelidade.
Durante a infância de Maria, a mãe dela teve uma anemia profunda. Médico nenhum descobria de onde era oriunda. Já estava até desenganada. José a levou num centro espírita, lá o médium recebia o auxílio do espirito de um médico. Sem demora, contrariando o anterior prognóstico, o espírita proclamou o seguinte diagnóstico: Verminose. Prescreveu um remédio e Laura foi curada.
Como a vida na Bahia era difícil, mudaram-se para São Paulo, onde o pai poderia ter mais clientes para a tinturaria. Apesar de pouco estudo em escola, José era um autodidata, gostava de ler e aprender. Fez o que pode para estudar os filhos, vendo que Verônica tinha gosto e jeito para os estudos, incentivou que ela fosse professora.
Depois de muitos anos, já com os filhos criados, Maria Verônica voltou a Bahia, para conhecer Salvador. Como turista chegaram até a pensar que ela era gringa. Apesar das raízes baianas, sua árvore genealógica tinha heranças francesas e alemãs, sendo loira e tendo lindos olhos azuis.
“Tenho saudade de minha querida infância, guardo tudo na lembrança, vou ficando por aqui… Deus me deu quase tudo que eu queria, até a felicidade de ser filha da Bahia. Há quanto tempo não vejo minha cidade, vou matar minha saudade…”
O tempo, senhor benevolente, revela mais uma vida…
Dona Luzia é uma senhora benzedeira, ramo de arruda na mão, altar dedicado a Jesus, Virgem Maria, Senhora Santana, São Cosmo e São Damião, reza valorosa, faz sua benção de maneira primorosa. Certo dia quando fui benzer ela me disse:
– Santa Luzia está sempre comigo… – proferiu essas palavras com firmeza e tranquilidade, parecia que a Santa era sua amiga desde a tenra idade.
Seu companheiro é um militar aposentado, um senhor de percepção e discernimento. Esta foi uma das observações que escutei ele fazer:
– Antigamente os farmacêuticos tinham conhecimento, podiam receitar remédios…. Receitavam remédios naturais e que funcionavam…. Hoje em dia não podem mais, precisa de prescrição médica…. Ainda por cima, os remédios receitados não adiantam nada…
Um casal de valor, do tempo que a reza e a benção também eram considerados remédios indispensáveis para a cura e boa saúde, principalmente das crianças.
“Eu conheci um curandeiro, no sertão do Nordeste, com reza curava qualquer dor de dente, com chá de raiz doença…”
Estas pessoas não são testemunhas oculares dos grandes fatos presentes nos livros historiográficos, guerras, revoltas, revoluções, invenções, cismas, tratados… São alicerces dos mil Brasis, são brasileiros…
São testemunhas silenciosas do tempo, são testemunhas da singeleza da história, da beleza das raízes brasileiras, das memórias das famílias, dos valores, das tradições, dos costumes, dos amores…
Assim seguimos a nossa andança… Jamais termina o nosso caminhar, só o Amor nos ensina onde chegar… Testemunhas do Tempo…