Vitimização diurna – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

O caso da menina de onze anos, vitima de estupro, que foi mantida pela Justiça em um abrigo de Santa Catarina para evitar que fizesse um aborto, com a juíza, comparando o procedimento a homicídio, mostra a violência generalizada e enraizada até no Judiciário, e também o caso da atriz Klara Castanho que teve sua privacidade invadida, depois de ser estuprada, e ter sua privacidade que estava em segredo. Os sequestros e suas torturantes modalidades; homicídios em linha desafiadoramente ascendente; “clonagem” de cartão de crédito; quadrilhas especializadas em saques eletrônicos e fraudes afins; corrupção em todos os níveis nos poderes públicos: o cenário social brasileiro é de pura desesperança, dada a onipresença do fenômeno do crime a demandar prementes soluções políticas para a sua erradicação ou, ao menos, para obrigatória diminuição.


A vitimização diuturna imposta a toda uma apavorada sociedade retira, lamentavelmente, o caráter de excepcionalidade do fato delituoso, para convertê-lo em mero lugar-comum nas relações sociais do cotidiano, tudo pela sua continuidade apavorante que impõe a todos um pseudo estado fleumático, mais de medo e perplexidade, ressalte-se, do que complacência. Parece que conviver com o espectro do crime a rondar os mais comezinhos hábitos da população tornou-se a sina inevitável das pessoas: fomos ou seremos as próximas vítimas.

Assombrosas e apocalípticas estatísticas criminais revelam o recrudescimento desmesurado da violência nas metrópoles, como também em longínquos e pacatos distritos interioranos, onde outrora e raramente a quietude do lugar era surpreendida por um delito isolado, no mais das vezes de natureza passional. É patente que os finais de semana e feriados transformaram-se em autêntica guerra civil, face aos morticínios e avalanches de roubos.

Os inúmeros programas televisivos unicamente voltados para a temática do crime atingem grande audiência, mormente quando veiculados em “horário nobre”, e alguns, como que substituindo a obrigação estatal de persecução de periculosos delinquentes, contam com a interação e o concurso dos cidadãos espectadores para um ofício de ordem eminentemente público: identificar, através de fotos repetidamente mostradas, o paradeiro daqueles que o Estado policial já perdeu de vista. Também os voltados para o entretenimento não deixam de promover chamadas sensacionalistas relativas à cobertura de acontecimentos delituosos nem sempre impactantes, salvo pela ênfase atribuída a tais eventos desviantes e seus partícipes, estes muitas vezes entrevistados à semelhança de grandes celebridades, em autêntica inversão de valores.

Matérias de destaque nas primeiras páginas dos grandes jornais não raramente abordam a prática de algum crime escabroso, máxime quando seu autor detém certa notoriedade em razão do cargo ou posição social. Não há mais surpresas na crônica policial: o ineditismo transfigurou-se em recorrente seriado. Conduta juridicamente punível, fato é que o crime está se tornando um episódio banal em nossas vidas, dada a repetição de sua prática por um rol de homo violens dos mais diversos estratos sociais, importando no correspondente descrédito do povo quanto aos mecanismos institucionais de sua prevenção, controle e punição, sendo certo residir neste intrigante aspecto a grande problemática da sua erradicação, pela desproporção mesma da adoção de políticas e investimentos públicos específicos sempre aquém do mínimo tecnicamente necessário, daí o florescimento e multiplicação de empresas particulares de segurança.

É sabido que a pobreza, por si só, não pode carregar a exclusividade de fator desencadeante do crime. Afirmar o contrário importaria em juízo preconceituoso dirigido às massas de desempregados, subempregados, famélicos e hipossuficientes brasileiros, que têm a honestidade como marcante e emblemática característica. Entretanto, não se pode olvidar que a aviltante penúria que grassa nos grandes bolsões de miséria possa forjar seus infelizes para a senda do crime. Assim, para aqueles à margem da sociedade e que ainda não foram cooptados pela maldade imposta pelos sucessivos desgovernos públicos, dever-se-ia conceder a liberdade que se espera de um estado democrático de direito: plena de direitos próprios de uma cidadania digna, em associação ao cumprimento das obrigações impostas pelo ordenamento jurídico vigente.

A banalização do crime passa, também, por uma crise institucional sem precedentes, imposta por ímprobos que se locupletam de um erário já carcomido pela corrupção, o que sugere o agravamento de sanções e reestudo de mecanismos legais que obstaculizem o curso de suas ações criminosas, a exemplo, dentre outros, da delimitação da imunidade parlamentar, bem como do ocaso da renúncia casuística do mandato popular para evitar a cassação dos direitos políticos.

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