
No dia 11 de Setembro de 2009 nosso país deu um importante passo em direção ao resguardo dos direitos difusos[1], trata-se da data de promulgação do Código de Defesa do Consumidor (CDC). que já no primeiro artigo mostra a que veio:
Art. 1° O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias. (CDC) (grifo nosso)
Conforme nosso grifo destaca, percebe-se que o conteúdo do CDC é matéria de ordem pública e de interesse social, atributo conferido pela própria Constituição Federal (CF), e como toda matéria de tal natureza, pode ser conhecida, apreciada, julgada de ofício por um juiz.
E o que isto quer dizer?
Explicando melhor, via de regra em nosso ordenamento jurídico a sentença tem que ser a exata medida da petição, sem acrescentar, mudar ou omitir. Ou seja, o juiz ao sentenciar não podem ultrapassar o pedido feito pelas partes na ação, nem decidir por coisa diferente da proposta no feito, muito menos se omitir perante o peticionado.
É nesse ponto que as matérias de ordem pública se diferenciam da regra geral, pois o magistrado tem uma certa liberdade na hora de sentenciar, ele não fica limitado ao que foi peticionado no feito, ele poderá, se sentir que deve, transcender ao pedido formulado pelas partes, isto é julgar de ofício.
Portanto, seguindo um raciocínio lógico e simples, podemos compreender que um juiz poderá sentenciar além do que foi pedido pelas partes em casos relativos a uma relação consumerista[2], tendo em vista que o CDC é matéria de ordem pública, inclusive julgando eventuais cláusulas abusivas presentes em contratos.
Na continuidade de sua redação, o CDC estabelece quais são as partes de uma relação consumerista, conceituando em seus artigos 2º e 3º o que é ‘consumidor’ e ‘fornecedor’:
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. (CDC)
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. (CDC) (grifo nosso)
Prosseguindo nossa linha de pensamento, podemos notar, sem esforços hercúleos, que o CDC também rege as relações de natureza bancária e financeira. A fim de respaldar ao artigo 3º do CDC o STJ sumulou a respeito::
STJ Súmula nº 297 – 12/05/2004 – DJ 09.09.2004
Código de Defesa do Consumidor – Instituições Financeiras – Aplicação
O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.
Referências:
– Art. 3º, § 2º, Disposições Gerais – Direitos do Consumidor – Código de Defesa do Consumidor – CDC – L-008.078-1990
obs.dji: Aplicação; Código de Defesa do Consumidor; Instituições Financeiras (STJ) (grifo nosso)
Com respaldo no artigo 3º § 2º do CDC e na súmula 297 do STJ é possível concluir que os contratos bancários estão dentro das relações de consumo que o código em questão regula. Por conseqüência poderiam ser apreciadas de ofício.
Entretanto, em 2009, estranhamente a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, editou uma súmula, cujo projeto foi apresentado pelo ministro Fernando Gonçalves, esta se revela em total desarmonia com os demais dispositivos anteriormente mencionados, veja-se o que dispõe o texto:
STJ Súmula nº 381 – 22/04/2009 – DJe 05/05/2009
Contratos Bancários – Conhecimento de Ofício – Abusividade das Cláusulas
Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas.
Referências:
– Art. 51, Cláusulas Abusivas – Proteção Contratual – Direitos do Consumidor – Código de Defesa do Consumidor – CDC – L-008.078-1990
– Art. 2º, § 1º, R-000.008-2008/STJ
– Art. 543-C, Recurso Extraordinário e Recurso Especial – Recursos para o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça – Recursos – Processo de Conhecimento – Código de Processo Civil – CPC – L-005.869-1973
obs.dji: Abusivo (a); Cláusula; Conhecimento (s); Contrato Bancário; De Ofício; Ex Officio; Julgador; Vedação (STJ) (grifo nosso)
A edição da supramencionada súmula nos parece um contra-senso, afinal vai contra todo raciocínio apresentado anteriormente, dando-nos a sensação de que um magistrado, um cidadão investido de autoridade pública, administrador da justiça, membro do Poder Judiciário deve vendar seus olhos perante eventuais cláusulas abusivas presentes em contratos bancários, atendo-se somente ao que a parte peticionou, ignorando as demais.
Extraindo as palavras do texto “A Súmula 381 do STJ: um ato falho?”, de autoria do juiz de Direito Gerivaldo Alves Neiva:
Ora, da forma em que foi editada a Súmula, quando o STJ diz que o Juiz não pode conhecer de ofício de tais cláusulas, por outras vias, está querendo dizer que os bancos podem inserir cláusulas abusivas nos contratos, mas o Juiz simplesmente não pode conhecê-las de ofício. Banco manda, Juiz obedece!
Fica certa impressão de impunidade, pois subliminarmente dá a entender que as instituições bancárias podem inserir clausulas abusivas à vontade, prejudicando seus clientes, e que em caso de um processo, o juiz só poderá sancionar sobre as clausulas abusivas que a parte enxergou, as demais ficarão impunes.
A súmula desarmônica, além de ir contrata a lógica do CDC e o bom senso, ainda contraria nossa Lei Máxima, a Constituição, nos nossos direitos e garantias fundamentais, veja-se o que diz o artigo 5º inciso XXXII:
Art. 5º XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor; (CF)
É realmente a defesa do consumidor que estão promovendo ou na realidade à defesa das instituições bancárias? Somos induzidos a pensar que a vontade das instituições financeiras é mais relevante que o bem-estar dos cidadãos de um Estado Soberano.
O contexto da edição desta súmula está envolta em um razão de veras obscura, não se sabe bem precisar ou explicar a razão deste texto ter sido aprovado, ou qual o animus[3] que conduziu o STJ, é comprovadamente sabido que as decisões usadas para redação da súmula foram os Recursos Especiais (REsp’s): 541.135, relatado pelo ministro Cesar Asfor Rocha, 1.061.530, relatado pela ministra Nancy Andrighi, e 1.042.903, do ministro Massami Uyeda. Ir além disso nos leva ao plano das conjecturas.
De toda forma, o caso da súmula 381 é um chamado para repensarmos o status quo[4] do nosso sistema monetário, de que maneira podemos melhorá-lo, torná-lo mais adequado as necessidades das pessoas, mais justo, como deve ser a relação do homem com o dinheiro. Essa é a reflexão que nos fica…
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[1] Direitos Difusos são aqueles transcendem a esfera de um único indivíduo, interessando a toda sociedade, ou seja, a uma coletividade indeterminada. Por exemplo, direito a qualidade de vida.
[2] Consumerista são aquelas relações regidas pelo Código de Defesa do Consumidor.
[3] Animus é uma expressão em latim que significa “vontade”.
[4] Status quo é uma expressão em latim que significa “o estado que as coisas estão”.
[author image=”http://oi59.tinypic.com/md2p28.jpg” ]Isabela Abes Casaca é graduada em Direito e integrante do movimento Novo Ágora. Considera-se escritora amadora.[/author]