A bolacha como troféu – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

O sinal, no cruzamento da André Araújo com a antiga Paraíba, demora o suficiente para provocar nos motoristas sustos e reflexões. A ansiedade toma conta de uns tantos condutores: sinalzinho que não abre! Ao redor, pedintes de todo tipo propondo-se a limpar para-brisas, indiferentes à polêmica instalada entre dar ou não dar esmolas. E lá vem uma jovem, criança no braço e outra dentro da barriga à vista, muitas venezuelanas, seguida por um menino que poderia ser seu irmão ou apenas um “colega de trabalho”.


Enquanto meus neurônios discutem entre si a melhor argumentação a favor ou contra aquela exploradora de menores ou explorada por maiores… ela já aspergiu o para-brisa com aquele líquido de duvidosa origem: está selado o contrato de trabalho. Dizem que as coisas andam cada vez mais difíceis para todos. Até mesmo para os. Já não se tem a liberdade de fazer e acontecer, sem que o olhar da mídia alcance, analise, julgue e, em alguns casos, sentencie moralmente os atos de homens públicos.

Pode-se questionar a justiça dessas sentenças, mas não sua eficácia. Para os trabalhadores também, tendo que matar a cada dia um leão com as próprias mãos, para ganhar o pão. Mas, como andam as coisas para quem está à margem da sociedade e de seus benefícios? Olho pelo retrovisor e vejo uma criança correndo. Passa adiante de mim e exibe para alguém, lá atrás, a quem não vejo, um troféu: um pacote de bolachas.

Precisava ver o sorriso aberto naquele rosto e deixar-se contagiar com tamanha alegria. Alguém tivera a ousadia de ferir a lógica cantada pelo rei do baião: numa esmola dada a um homem que é são, ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão. E dada a uma criança que deveria estar na escola, adquirindo hábitos de convivência, praticando esportes, aprendendo a ler, escrever e a ser cidadão, qual a implicação para a formação de seu caráter e seu futuro? Estamos perdendo o bonde da história. Poucos são marginais por má índole. Em alguns casos, os pais poderiam até ser moralmente responsabilizados por suas más escolhas ao longo de suas vidas. Em muitos casos, porém, são também vítimas de uma injustiça histórica. Um círculo vicioso que não terá fim a partir de iniciativas isoladas. O crescimento do problema exige integração das sociedades, civil e política.

Mas a eficácia da estratégia não poderá estar condicionada a uma radicalidade tal que exclua a solidariedade. A fome, dizem os “especialistas”, não pode esperar. O que dizem, sentem e pensam os famintos? Um projeto consistente não pode deixar de lado as lutas e a criatividade dos beneficiários. A celebração daquela criança, carregando em suas mãos o troféu da bolacha, poderia passar por uma transubstanciação: da fome de pão à fome de reconhecimento de sua dignidade. Migrar para outras celebrações. Desportivas e educacionais, por exemplo: no seu esporte preferido ou nas olimpíadas matemáticas de sua escola. Quem sabe ainda despertando seus dons artísticos, uma meta com a qual e para a qual poderemos, nós, os incluídos, nos comprometer.

Deixar um pouco de lado o esporte nacional da crítica ao governo e ao sistema. Preservando a consciência crítica, botar a mão na massa. Somos reconhecidos, internacionalmente, como o país do samba e do futebol. Ao gingado, à alegria e à criatividade poderíamos somar o efetivo respeito à dignidade humana.

O sentimento de brasilidade que compartilharemos, pobres e ricos, incluídos e excluídos, na próxima Copa do Mundo, que será em dezembro e não mais em julho, poderia ser antecedida por uma copa da solidariedade. Ética e cidadania podem e devem ser a marca e a urgência de nosso tempo. Enquanto elas não acontecem, seguimos pela vida vendo e elevando a bolacha como troféu.

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