Escolha de Sofia – Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

Caros leitores, volto a insistir em tema já tão debatido complexo e comentado por mim mesmo neste espaço, sobre a decisão de um médico ao ter que optar por um idoso ou um jovem para dar o aparelho que salvará a vida de um somente, nesta pandemia. O meu amigo Antônio Vilela, já fez uma abordagem preciosa sobre o tema, bem como muitos neste país e neste mundo afora já se manifestaram sobre o caso. Queria lembrar que o fato gerador do título do artigo, para quem não viu o filme nem leu o livro A escolha de Sofia, é um filme que parece narrar o Nazismo, uma vez que Sofia foi levada ao campo de concentração e, após as cenas iniciais, a narrativa volta-se ao Nazismo.


A escolha de Sofia se dá no campo de concentração nazista, onde ela tem que optar pela vida de um dos seus filhos. O filme não fala necessariamente sobre a escolha, mas sobre a culpa e a profundidade exigida de cada ato, mesmo os impensáveis. No caso presente da pandemia não parece ser que a idade seja um critério legal ou moral admissível para decidir quem vive ou quem morre. Em 14 de março passado, o jornal inglês The Telegraph veiculou a seguinte matéria: “Italianos com mais de 80 anos ‘serão deixados para morrer’ em meio ao surto de coronavírus no país “. O Departamento de Proteção Civil da região do Piemonte, uma das mais afetadas, elaborou um documento determinando que pacientes com mais de 80 anos ou com a saúde muito debilitada não serão levados às UTIs, já sobrecarregadas. Com isso, não terão acesso a um ventilador mecânico, ficando à própria sorte ou a cuidados paliativos.

A justificativa é que o crescimento desenfreado da epidemia levou a um desequilíbrio entre as necessidades clínicas das vítimas do COVID-19 e os recursos disponíveis. Segundo o documento, nessa situação excepcional “os hospitais serão forçados a focar nos casos em que a razão custo/benefício é mais favorável ao tratamento clínico “. Ou seja, quando houver maior chance de sobrevivência. Um típico argumento de reserva do possível e da melhor alocação de recursos escassos em uma crise.

Há chance de vivermos algo assim no Brasil? Em outras palavras, se chegarmos a esse ponto, o SUS poderá escolher entre “quem vive e quem morre” exclusivamente com base na idade? E mais: o argumento da reserva do possível é uma boa justificativa para assumir a idade como critério explícito de admissão (ou não) em unidades de terapia intensiva? Spoiler: não é. A saúde é direito de todos e dever do Poder Público, segundo os artigos 6 e 196 da Constituição Federal. Ainda, o serviço de saúde oferecido pelo ente público deve assegurar “atendimento integral”, o que inclui o tratamento intensivo, conforme o artigo 198, inciso II, da Constituição. Então como os médicos intensivistas do SUS escolherão quem vai para UTI ou não? Existe mais de um modelo de escolha no mundo hoje. Ou seja, quanto maior a probabilidade de recuperação do paciente, maior prioridade ele terá.

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Consultor.

Porém, a resolução não diz como calcular essa probabilidade. Ou melhor, não indica quais variáveis devem ser levadas em conta para calculá-la, deixando a critério do médico. Assim como a maioria dos fenômenos biológicos, as taxas de sobrevida são afetadas pela idade. Nesse caso, a idade é o que os estatísticos chamam de proxy: uma variável que não é em si diretamente relevante, mas que serve no lugar de uma variável mais difícil de mensurar.

Presume-se que a idade guarda relação de pertinência com certo estado de saúde, o que por sua vez pode indicar a probabilidade de recuperação. Porém, a idade é uma variável constitutiva, mas não determinante dessa probabilidade. Não são só os idosos que estão no grupo de risco do COVID-19. Também estão diabéticos, hipertensos, quem tem insuficiência renal crônica, doença respiratória crônica ou doença cardiovascular. Esses fatores podem ser proxys mais precisos do que a idade em si para calcular a probabilidade de recuperação. Pode ser que um idoso saudável tenha mais chances de recuperação do que um jovem cardíaco ou diabético.

Com o que chegamos à nossa resposta: se a crise do COVID-19 piorar, o SUS não poderá deixar de tratar alguém nas UTIs apenas com base na idade. Outros fatores deverão ser levados em conta na triagem. Tanto é assim que o artigo 9o da resolução do CFM dispõe que as decisões sobre admissão em UTI deverão ser feitas de forma explícita, sem discriminação por questões de idade. Resta a questão de fundo: se a lei permitir a adoção exclusiva e explícita da idade como critério de admissão ou não nas UTIs, seria aceitável? Não, não seria. Mesmo que “legal” segundo a lei vigente, esse critério seria discriminatório no pior sentido do termo. Eis o princípio básico: todas as pessoas têm o mesmo valor intrínseco e assim temos de tratá-las com igual respeito e consideração. Esse valor não varia de acordo com suas características, tais como idade, gênero e raça, porque a dignidade não vem em graus.

Tratar pessoas de modo diferente passa a ser problemático quando, em determinados contextos sociais, atenta contra a condição dessas pessoas enquanto dignas de igual respeito. É o processo de estigmatizarão, por exemplo: pessoas idosas como mais próximas da morte, mais fracas, menos importantes. Aqui surge o problema. A idade não é um critério legal ou moral admissível para decidir entre quem vive e quem morre. O critério adotado hoje pelo SUS é internacionalmente reconhecido e obedece a reserva do possível. Decidir prioridades com base em critérios clínicos em princípio não configura uma discriminação degradante. Não há tratamento intensivo para todos, será inevitável fazer escolhas. Mas a idade não poderá ser adotada de forma explícita e exclusiva, como na região do Piemonte na Itália, pois assim proíbe a nossa lei. A pessoa não perde seu valor com a idade. Seja qual for o cenário brasileiro nos próximos dias, o SUS não poderá realizar a escolha de Sofia. Se você não pegou a referência, aproveite a quarentena e veja o filme. Sem sair de casa, claro.

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