
Há anos tive uma boa conversa com dona Maria Rezende, viúva também já falecida do mestre Lúcio de Rezende, professor dos tempos da cátedra universitária da antiga Faculdade de Direito do Amazonas. Uma senhora que traz de origem a marca da distinção. Falamos de Manaus, de famílias e de gente do passado, que hoje poucos ainda guardam na memória.
Claro que as maiores lembranças de dona Maria foram reservadas ao marido, nas dimensões primeiras de seu próprio lar, construído ao longo de tantos anos. Advogado, professor e desembargador, Lúcio foi um homem extraordinário, um senhor profissional do Direito, elegante, reto e inatacável. Vivendo na sua época, vivia como se pertencesse a uma outra época, sempre distante da mediocridade e de outras fatuidades humanas. Por onde passou, em qualquer caminho, conduziu-se com elevada dignidade, entrou e saiu honrado, sem um único pingo de mácula sequer.

Admirava-o por sua sólida e invejável cultura. Fui seu aluno da cadeira de Direito Civil durante quatro anos. Com ele aprendi muito da matéria mais importante do curso, espécie de tronco para os demais ramos da Ciência Jurídica. Era um expositor clássico, tinha a postura do catedrático, consciente de seus domínios no campo do Direito. Guardava interpretação precisa e brilhante para qualquer dispositivo do Código Civil de 1916, dos mais singelos aos mais complexos. Nas aulas, um discurso perfeito. Usava a palavra, cada palavra, com adequação primorosa, e a entonação dava o lugar certo de cada vírgula e de cada ponto no texto verbalizado. Tinha o humor apurado do inglês. Aqui e ali, mas sempre com extrema discrição, desdenhava da estultice que um ou outro mais ousado não conseguia conter.
Devo-lhe muitas gentilezas. A primeira delas, a grande paixão que até hoje me move o Direito Civil, fruto de suas lições na “Velha Jaqueira”. Depois, a indicação de alguns clientes importantes, pois concluí o curso na mesma ocasião em que o professor encerrava suas atividades como advogado. Foi ele quem também sugeriu meu nome para lecionar na Universidade, nomeado mais tarde pelo reitor Áderson Dutra. Por tudo isso, serei sempre grato ao mestre generoso.
Nas recordações de dona Maria, ao final da nossa conversa, fatos que eu desconhecia e que me comoveram. Ela e seus pais foram vizinhos e amigos dos meus avós, da minha mãe e dos meus tios, na Joaquim Nabuco. Depois de anos e anos, fora dos limites de meu círculo familiar, voltei a ouvir o nome do velho José Luciano de Moraes Rego, de sua mulher Isolina, dos tios, e até de minha bisavó Antônia, que chegou de Lima, no Peru, para assumir o lugar da filha falecida na educação de seus netos.
Ao chegar no mesmo dia em meu escritório, contemplei uma antiga moldura de 1930 com um belo retrato de minha mãe aos 21 anos e experimentei a sensação estranha de fazer parte daquele passado, como se penetrasse no ambiente daquele tempo, tão bem descrito por dona Maria, com riqueza de memorialista.(Paulo Figueiredo é Advogado, Escritor e Comentarista Político – [email protected])
NR – Artigo publicad0, excepcionalmente, hoje (07.03,17)