O lado sedutor dos eufemismos – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Consultor.

O homem foi dotado de linguagem para revelar ou mascarar seu pensamento? No livro O Telefone dos Mortos, conta a história de um cientista que pretendia inventar uma máquina capaz de transferir o pensamento do cérebro de um interlocutor para uma tela, tornando-o visível. Desistiu da ideia, apavorado com as consequências de podermos conhecer o pensamento real das pessoas na convivência diária, nos debates políticos, congressos literários ou universitários, encontros de chefes de estado, empresários ou simples festas sociais e reuniões familiares. Compreendeu, enfim, que a fala é útil para ocultar a verdade do pensamento humano e favorecer as operações socialmente convenientes da dissimulação, capazes de assegurar o equilíbrio na convivência.


Desde a Torre de Babel, a vida humana seria impossível sem os mascaramentos tornados viáveis pela linguagem. Um dos principais recursos de amaciamento da linguagem é o eufemismo. Consiste em dizer uma coisa pelo seu lado contrário. Não é complicado. Em vez de afirmar que seu colega “é burro”, você diz que “ele não é inteligente”. O Aurélio assim o define: “Ato de suavizar a expressão de uma ideia, substituindo a palavra ou expressão própria por outra mais agradável, mais polida”. O eufemismo é um sedutor recurso para escritores.

Mas não só para eles. Todo esse preâmbulo é apenas para lembrar que estamos vivendo a época dos grandes eufemismos oficiais, manipulados por governantes e economistas. Tem sido, na verdade, uma espécie de mal do século. Hitler, por exemplo, falava em “solução final do problema judaico”: Queria dizer: extermínio em massa de judeus, ciganos e eslavos, através de fuzilamentos coletivos e câmaras de gás. O mais sujo dos golpes nazistas virou “limpeza étnica”.

No Brasil dos nossos dias, o dialeto, usado pelos economistas do governo é um canteiro de eufemismos viçosos. Por exemplo: mandar funcionários públicos para a rua passou a ser “plano de incentivo às demissões voluntárias”. Demissões voluntárias! Como se alguém quisesse perder o emprego numa época de crise e falta de oportunidades. Mas o governo, igualmente, fala com a maior naturalidade em “enxugar a máquina”. Outro eufemismo (que se confunde com cinismo) para “demissões em massa”. Muitos empresários também querem “enxugar” suas empresas. Um enxugamento geral – mas, só para os outros, nunca para nós mesmos (quando então o emprego é sagrado). É fácil estimular desemprego quando não se é atingido. Mas vamos adiante. Há uma grande onda neoliberal contra os direitos trabalhistas.

Busca-se a extinção de conquistas históricas dos trabalhadores, obtidas após uma época em que mulheres e crianças se esfalfavam 20 horas por dia nas fábricas de Londres. Stuart Mill afirmou: “A prosperidade industrial da Inglaterra repousa no infanticídio”. Tudo é esquecido, os empregados já são demasiadamente privilegiados. Vamos, portanto, “flexibilizar” as leis trabalhistas – diz o governo, fazendo coro com a ordem mundial.

A “flexibilização” é o novo nome daquele velho impulso que levava Hobbes a ver no homem o lobo do homem e gerou, como reação, toda a teorização marxista. “Flexibilizar” é jogar o trabalhador no meio das forças cegas do marcado. Subtrair direitos. E o que dizer da palavra “austeridade” (leia-se “arrocho” contra a sociedade), sempre invocada em momentos de crise aguda? “Austeridade” passa então a ser a exigência de que todos se privem daquilo de que o governo não abre mão: gastar com viagens, comprar, desperdiçar, inverter prioridades, esbanjar. É palavra supressa do dicionário oficial, aplicável apenas aos esbanjadores do lado de fora do poder.Mas o espaço está acabando, citemos somente mais um exemplo. Tomemos ao acaso a palavra “emendar”. Significa o que, no Brasil de hoje? Emendar a Constituição, ou seja, o ato de ajustar a Lei Maior aos interesses transitórios do governo. Por exemplo: reeleger o presidente, extinguir a estabilidade para demitir funcionários, cobrar outra vez dos inativos, escancarar o país à globalização e ao “capital volátil” (eufemismo para “investimento predador”). Já imaginaram se todos os governos futuros pretenderem também “emendar” a Constituição?

Enfim, nunca tivemos mesmo um país inteiriço. O Brasil vem sendo historicamente uma sucessão de fragmentos (éticos, políticos, sociais e econômicos). Um país emendado, colcha de retalhos dos interesses das suas elites e dos governantes que, emendando-o sempre, nunca se emendam a si próprios. O que é o mínimo que eu posso dizer – com eufemismo.

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