A Lapa – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

Já fiz dois artigos sobre o Bar Garota de Ipanema no Rio de Janeiro, e um falando das belezas de um modo geral da cidade maravilhosa, por quem eu tenho encantamento e me traz energia. Hoje escreverei sobre um bairro boêmio que já frequentei muitas vezes e ainda frequento quando estou na cidade mais linda do planeta no tocante a natureza. Falo sobre a Lapa, lugar de inúmeros bares e de vários inícios e términos de relacionamento, motivo de letra de música. Dentro do ideário ilusionista do milagre econômico que a ditadura civil-militar nos enfiava goela abaixo, transformações, não só espaciais, eram arbitrariamente impostas. Como Satã, Aguinaldo também experimentou um desterro político e não mais voltou ao bairro como morador.


A Lapa, contudo, como uma fênix, passa por uma redescoberta, no final do século XX. Portanto, se toda a ideia de uma vida boêmia ali existente era associada às práticas de uma suposta decadência moral, as tentativas de provocar a derrocada física daquele ambiente, como um polo de criatividade, sobrevoou algumas vezes esse “território do livre”. Pela força da caneta, esse espaço do “pecado permitido” foi condenado a desaparecer, pela primeira vez, por uma onda moralista do pós-Segunda Guerra.

Apontando essa primeira tentativa de assassinato, de morte da simbologia da Lapa, a narrativa de Antônio Maria, colocada no espaço azul do livro, já quase anunciando os dilemas mais contemporâneos, ao meu juízo a mais instigante –, resumem esse tempo ao sentenciar que foram os dois últimos anos da Lapa que marcaram época. Vieram logo depois o fechamento dos prostíbulos e a decretação da ilegalidade do jogo. Os malandros iriam ficar por ali, esperando o quê? Dispersaram-se, empobreceram, arribaram nos subúrbios, em casas de parentes humildes que os esperavam, cheios de fé, com uma cama por forrar e um prato a mais a pôr na mesa. Nesse sentido, minhas escolhas recaem sobre textos que procuraram apreender o bairro em seus vários momentos de decadência e opulência, trazendo-o à tona pelo signo do abajur lilás, da ”dolorosa visão da borrada maquiagem de véspera no rosto precocemente envelhecido das mulheres”, isto insinua a lembrança de um outro personagem que, mesmo não sendo do local, carregava o estigmada marginalidade – Plínio Marcos, ”o que surge na literatura sobre o bairro não é a malandragem, mas as mulheres de vida fácil, um certo desencanto e um ceticismo crítico”.

Essa bruma de alegria-triste define tanto o encanto pela história da Lapa quanto o seu mistério. Abrigando um espaço criativo e transformador, envolto no signo da decadência, a Lapa está sempre em pauta.

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Consultor.

Suas transformações arquitetônicas ao longo das décadas espelham as rugas que marcam o rosto dessa Cidade-Metrópole, Cidade-Capital que não perde, felizmente, essa aura da inventividade criadora. Dentro desse espírito de renascimento e transformação, de fim de linha e recomeço eterno, de berço e morte, em 10/4/2002, o jornalista Elio Gaspari, em sua coluna para o jornal O Globo,narrou uma visita que fez ao recém-remodelado bairro da Lapa, que vem recebendo da Prefeitura da cidade obras de saneamento e infraestrutura. Entusiasmado com o encontro do passado que está impresso no casario e nos paralelepípedos das ruas do Lavradio, Inválidos, Moraes e Vale e da avenida Gomes Freire, definiu que “deu-se na Lapa o reencontro das duas cidades que convivem no Rio, a dos pobres e a daqueles que acham que não são pobres.

Sempre que essas duas populações se encontram, o Rio floresce. Sempre que elas se separam, a cidade se degrada”. Contaminados por essa aposta na integração de territórios e abandonando um discurso médico-policial tão marcadamente moralista, autoritário e segregador, que dividiu a cidade e seus habitantes por uma moral da boa conduta, é que se percebe que a saída está em não fracionar. Para tal, há que se aproximar os espaços e desconstruir a visão de uma cidade sã versus o lupanar, investindo, portanto, no contato e na mistura. Como também, acreditando que não são os mortos que dominam os vivos e, sim, que há uma tradição e uma cultura vinculadas aos processos de criatividade e não de fossilização.

Para ilustrar e concluir, retorno à sugestão de Gaspari: apostar no diálogo e na integração das “partes da cidade” e, portanto, discordar da percepção, quase um devaneio lunático, de que a cidade, como um corpo, pode ser partida em pedaços, em que cada porção corresponderia a um lugar de saciedade. Para visualizar tal idiossincrasia, fico com as saborosas narrativas de Orestes Barbosa, recuperadas por Lustosa. Esse carioca, jornalista e compositor desenha, com maestria, a história de Alice Cavalo de Pau – uma entre as muitas prostitutas imortalizadas na fantasia da “vida fácil”.

No bordel de Alice, na rua Maranguape, a nata da política nacional vivenciava os prazeres da carne, como se em outros espaços contemplassem apenas o regozijo das mentes. Um cliente de renome lhe pede uma moça, mas faz uma ressalva: “Quero dormir com uma mulher inteligente”.

Dentro da perspectiva de criar ilusões e “faturar” alguns trocados, algumas prostitutas se faziam passar por francesas e se aproveitavam da febre do culto à cultura europeia.

A cafetina Alice não consegue compreender seu freguês e faz graça de seu pedido. Desejando sintonizar o homem ao lugar onde está e ao que realmente ali há de melhor, soluciona a questão endereçando-o ao que julga ser o local do seu prazer: “O Sr. quer dormir com inteligência? Então não é aqui. É na rua São Clemente, 134. Vá dormir com o Rui Barbosa”.

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