
Precisava ser divulgado um relatório da ONU para se ter conhecimento da ocorrência de torturas nas delegacias de polícia e nos presídios brasileiros? Claro que não! Grosso modo, a população brasileira é dividida em duas partes bem nítidas e reconhecíveis: os impunes e os suspeitos. Impunes são os mandatários com imunidade parlamentar, os cidadãos comuns com renda suficiente para remunerar um advogado ou até um rábula esperto o bastante para trafegar nas brechas das leis e os pistoleiros menores a soldo do crime organizado. Suspeitos são todos os outros que não se enquadram nessas três definições: brasileiros sem mandato, e, portanto, sem a gazua que abre os cofres públicos, sem renda para assegurar o direito de defesa garantido na Constituição e ainda sem o salvo-conduto da menoridade para ser usado como o dedo no gatilho da indústria internacional do crime.
Esses últimos sempre foram torturados, porque a sociedade formada pelos impunes que mandam não aceita desperdiçar os recursos exigidos para remunerar e equipar um aparelho policial minimamente capacitado para investigar crimes, localizar e prender criminosos. A técnica é sempre a mesma: todos os que não são impunes são os suspeitos de sempre. Havendo um crime, eles são presos e torturados até confessá-lo. Obtida a confissão, são atirados no inferno das prisões onde a tortura é uma prática que, apesar de brutal, em quase nada difere da rotina do amontoado de bestas em celas infectas, nas quais a vida humana é um castigo quase impossível de suportar. A prática da tortura é disseminada há séculos, mas a palavra só teve a ênfase merecida depois de parentes, afilhados ou anexos desse baronato terem sido pendurados nos paus-de-arara da repressão à guerra suja da esquerda armada contra a ditadura militar. O lema politicamente correto de então – “Tortura, nunca mais” – deixou de ser uma bandeira de luta no instante em que o sobrinho do escrivão ou o neto do coronel largaram a clandestinidade, pesada ou charmosa, pela luta para sobreviver. Os suspeitos de sempre continuam gemendo e chorando no vale de lágrimas de delegacias e presídios, mas quem é que vai se interessar por isso?
Alguém dirá que o membro de uma comissão de direitos humanos de uma casa de leis no País protestará com vigor contra esse estado de coisas. O relatório da ONU gerou intensa literatura farisaica de comiseração a respeito dos seres humanos que recebem nas prisões brasileiras tratamento que não é dispensado a feras. E daí? O parlamentar esquerdista que manifesta sua indignação contra a polícia bárbara que tortura para não investigar é o mesmo que luta para aumentar a verba disponível para enganchar o cunhado no cabide de seu gabinete.
A humanização da vida dos presos brasileiros começará pelo aumento de vagas nas prisões, ou seja, pela construção de presídios. Esse é um dos itens do plano de segurança pública anunciado pelo governo federal, que acaba de mandar uma Pec ao Legislativo, para auxiliar as polícias estaduais. Então, ninguém precisa cursar matemática no MIT para concluir que uma chave de ouro que tranque os Correios, e outras estatais que no orçamento de 2026 já prevê um rombo de seis bilhões , poderia significar a multiplicação das vagas em presídios por quatro, tornando, se não mais confortável, menos vil o dia a dia dos presidiários. Mas como fazer essas contas num país onde os políticos se recusam a usar máquinas de calcular?
A cultura da brutalidade, descrita no relatório, não resulta da maldade intrínseca dos policiais, mas da conveniência cínica dos políticos profissionais.