Memória histórica, alma de um povo – por Osíris Silva

Escritor e economista Osíris Silva/Foto: Divulgação

De acordo com primoroso texto, o crítico literário Antonio Candido (1918-2017) questiona valores políticos e culturais da sociedade urbana, subjacente em “A Cidade e as Serras”, de Eça de Queirós, um clássico da literatura portuguesa, de 1901, quando foi publicado. Até os dias de hoje, o livro instiga o leitor face a conflitos, insatisfações, males da civilização, o vazio e o tédio da vida nas cidades comparativamente ao ritmo indolente e infatigável do campo.


Candido refere-se ao último livro de Eça, ao qual não conseguiu concluir e dar o toque final, a última demão, com sua revisão sempre perfeita, porque morreu em 16 de agosto de 1900. O romance, escrito em primeira pessoa, tem como personagem  José Fernandes, que conta a história do protagonista Jacinto de Tormes, nascido e criado em Paris, mas filho de fidalgos portugueses da cidade de Tormes.

Pois bem, relendo a obra nesses dias de pandemia observei, ou melhor, captei aspectos próximos do nosso cotidiano expressos com certa clareza na visão do que Eça distinguia entre o padrão social da vida nas cidades, grandes ou pequenas, e a vida bucólica, pastoril, do campo. A distância é grande, porém os liames gerados entre os seres humanos, num ou noutro ambiente, são inconfundíveis. Confirmo essa minha percepção transportando-me a valores de Manaus predominantes nos anos 1960 e 1970, os quais vivi intensa e produtivamente.

Época em que o padrão comportamental, ético e social se distinguia pela força do caráter da gente que aqui construía uma sociedade à imagem e semelhança do povo amazonense; do  caboclo que efetivamente valorizava o que era nosso. E disso se orgulhava, se comprazia, não escondendo nenhuma de nossas idiossincrasias forjadas nos beiradões e que moldaram o perfil ético deste povo de Ajuricaba.

Politicamente, Manaus sobressai-se por reunir uma sociedade culta, educada, mesmo que vivendo os estertores da Belle Époque, do declínio do período áureo da borracha, do qual herdamos algumas mentes brilhantes, hoje raridades, no campo da política, da música, das artes, da poesia ou da literatura. Muitos poetas hoje não são mais poetas, escritores fingem escrever e as artes, estas, ao menos, resistem estoicamente movidas por alguns talentos que trabalham duro e procuram honrar e aperfeiçoar o padrão típico daquele passado. Difícil citar nomes, mas alguns se distinguem, como na música de raiz cabocla de Celdo Braga, das obras plásticas de Rui Machado e Otoni Mesquita, herdeiros de Moacir de Andrade, Hadna Abreu e Rosa dos Anjos.

No campo político, como se pode avaliar nesses negros tempos de coronavírus, o desastre é maior. Ao longo dos anos 60 a 80 o Legislativo contava com  nomes de alta respeitabilidade, como no Senado de Álvaro Maia, Vivaldo Lima, Jefferson Péres, José Lindoso,  Fábio Lucena, Arthur Virgílio Filho, Evandro Carreira, João Bosco Ramos de Lima e Arthur Netto. Na Câmara Federal de Bernardo Cabral, Eunice Michiles, Vivaldo Frota, Sadie Hauache e Almino Affonso.

Na Assembleia Legislativa despontavam nomes como Homero de Miranda Leão, poeta de rara inspiração, caráter, fina ironia e habilidade parlamentar. Na tribuna sobressai-se a força de oradores renomados do porte de um João Valério, Renato Souza Pinto, Francisco Queiroz, Andrade Netto; da seriedade e liderança de Rui Araújo, de João Braga Jr. ou das firmes convicções políticas de Arlindo Porto, único sobrevivente daquela geração de ouro. Nomes que se foram, mas que deixaram marcas sólidas na história do Amazonas.

O propósito destas reminiscências é glorificar o passado em respeito à história para poder potencializar o futuro desta terra.  Entendo, na verdade, que a maior força de nosso caráter como sociedade deveria ser a valorização dessa herança histórica, de nossa resiliência, a capacidade de absorver rupturas e de recuperar choques por meio de atitudes em relação às quais não podemos subestimar, mas superar o sofrível padrão hoje prevalente  na estrutura de governo e política do Amazonas e sua gente.

Manaus, 1 de fevereiro de 2021

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