A educação brasileira e a lei da mordaça

Foto: Divulgação
Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

O Brasil tem uma história de escolarização tardia, pois, ainda na década de 1980, 50% da população que entrava na escola não passava do primeiro ano primário e somente 28% da população escolar concluía o oitavo ano do antigo Ensino de Primeiro Grau. O quadro triste da educação brasileira só começou a ser revertido a partir da democratização do país e da promulgação da Constituição Federal, de 1988; do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, legislação esta que vem sustentando os esforços para a superação da exclusão e do fracasso escolar.


Nesse contexto, vem sendo observada a expansão de matrículas nos sistemas de ensino e a produção de estratégias de permanência e de promoção dos jovens nas instituições educativas. Dentre essas estratégias estão o programa de transferência de renda, Bolsa Família, e o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica, incluindo a educação Pré-escolar e o Ensino Médio como níveis de ensino obrigatórios e que exigem investimentos por parte do poder público.

Mas a educação nacional ainda enfrenta inúmeros problemas como a falta de professores, a inexistência de quadros suficientes para o atendimento de disciplinas da área de Ciências da Natureza, a fragilidade de políticas de formação continuada, o descumprimento da lei de 2008 do piso salarial. Além disso, muitos docentes precisam atuar em diversas instituições com cargas de trabalho de até 60 horas semanais, atendendo um número de alunos por turma incompatível com o acompanhamento individualizado de suas aprendizagens.

Os problemas nas escolas e o movimento dos estudantes

No final do primeiro semestre de 2016, o movimento de ocupação das escolas públicas estaduais no Rio Grande do Sul, composto por estudantes da Educação Básica, reivindicava melhores condições de estudo e atendimento das demandas dos professores e demais servidores. Pediam a nomeação de docentes concursados para todas as matérias de ensino; a contratação de monitores; o pagamento integral dos salários; merenda escolar com qualidade nutricional apropriada; recursos para a manutenção das instalações escolares; adequações arquitetônicas que produzam a acessibilidade e a independência de pessoas com deficiência e o arquivamento de dois projetos de lei: PL 44/2016 que pretende transferir recursos públicos para Organizações Sociais privadas realizarem a gestão escolar, incluindo a contratação de diretores e professores sem concurso público; e o PL 190/2015 com o programa Escola sem Partido.

O que é Escola sem Partido?

Escola sem Partido (ESP) é um movimento inspirado no norte-americano “No Indoctrination” e tem por objetivo protocolar projetos de lei a fim de incluir, nas diretrizes e bases da educação nacional, um programa que visa censurar a liberdade de expressão do professor, por tomar o estudante como audiência vulnerável à doutrinação política e ideológica. O movimento atua em todas as esferas do governo, já tendo protocolado quatro projetos na Câmara dos Deputados e um no Senado, no âmbito federal. Na esfera estadual, são 12 projetos protocolados até o momento com um aprovado no estado do Alagoas. E na esfera municipal 2 projetos foram aprovados em Santa Cruz do Monte Carmelo-PR e Picuí-PB.

Porém, não só os professores serão afetados. O movimento pretende que os princípios do programa ESP sejam aplicados aos livros didáticos e paradidáticos; ao ENEM e vestibular; às provas de concurso para o magistério; e ao ensino superior. O projeto ESP veda o estudo de conteúdos que estejam em conflito com as convicções religiosas e morais das famílias, como saúde sexual e reprodutiva, e propõe a delação anônima de professores às secretarias de educação, disponibilizando um modelo de notificação extrajudicial que visa coagir os professores através da ameaça de penas que vão da impossibilidade de exercício profissional à prisão e perda de patrimônio.

Na publicação eletrônica “extra.globo.com”, pode ser encontrado um exemplo de prática pedagógica que o movimento combate, a partir de questão de uma prova com o seguinte texto introdutório:

O processo de globalização, que vive o mundo de hoje, propõe como elemento de estabilidade social, econômica e política, o velho paradigma das leis de mercado. (…) sobrevive só quem tem competência.

A partir dessa introdução é feita a seguinte solicitação:

Considerando o texto acima, podemos afirmar que o capitalismo fundamenta a lógica imoral da exclusão. Justifique tal afirmativa.

Segue, então, a resposta de uma estudante à questão da prova, a qual o ESP considera como correta:

Não concordo que o capitalismo fundamenta a lógica imoral da exclusão. Muito pelo contrário. O capitalismo amplia empresas, gerando assim, empregos. O capitalismo dá oportunidades a todos, diferente do comunismo e socialismo que não deu certo em nenhum país. A exclusão não está relacionada ao capitalismo, porque ele não gera pobreza. Fica pobre quem quer, pois ele gera oportunidades. E também tem a meritocracia, que deve ser vista como um plus na sociedade, pois quando se recebe uma oportunidade é possível alcançá-la com mérito e dedicação.

O exemplo sugere que o ESP confunde fatos e conhecimentos sociológicos com meras opiniões, sem embasamento na realidade. Nessa concepção, é possível imaginar que um professor seria considerado doutrinador se abordasse a usurpação das riquezas dos povos colonizados e escravizados que foi usada para produzir as revoluções industrial e tecnológica de impérios europeus. Ou se mencionasse o genocídio de populações africanas e indígenas ainda em curso. Também poderia ser acusado se apontasse que a taxa de desemprego no Brasil é maior entre os negros do que entre os brancos.

Provavelmente, seria considerada ideológica a informação de que as mulheres recebem salários menores do que os homens para desempenhar as mesmas funções. Ou ainda que pessoas da comunidade LGBT sofrem discriminação em escolas e em centros de saúde. Portanto, as desigualdades sociais produzidas ativamente ao longo da história, de acordo com o ESP, não são fatos, são opiniões e o seu estudo é visto como ideológico.

Quais as ações do ESP e seus patrocinadores?

O movimento interferiu na redação do Plano Nacional de Educação retirando as metas e estratégias de promoção de equidade étnico racial e de gênero. Processou o INEP, órgão responsável pelo ENEM, por incluir o tema da violência contra a mulher na redação e por considerar o critério de avaliação (respeito aos direitos humanos), como doutrinação de esquerda.

O ESP é patrocinado pelo Instituto Liberal e entre seus apoiadores estão integrantes da frente parlamentar religiosa. Essa frente é formada, principalmente, por deputados evangélicos, mas, também há deputados católicos, luteranos e batistas. O movimento também conta com o apoio da bancada ruralista, que é contrária à demarcação de terras indígenas e quilombolas e da bancada que defende a indústria de armas, além do Movimento Brasil Livre (MBL) e dos Revoltados Online, os quais disseminam propostas e atividades que mesclam liberalismo e fascismo.

Mas, o projeto não conta apenas com o apoio de movimentos que buscam agir pelos meios legais. O texto dos projetos pode conferir legitimidade a posições de extrema direita, as quais motivam delinquentes a cometer delitos como: intimidar alunos que participaram de ocupações de escolas; invadir a UNB, onde agrediram estudantes com armas de choque; espancar um aluno indígena, matriculado no curso de medicina veterinária, em frente à casa do estudante da UFRGS; e assassinar um estudante negro e homossexual no campus da UFRJ.

O que mais o ESP esconde?

Os projetos de lei do ESP ferem o artigo 5 da Constituição Federal:

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

E também o artigo 206, inciso II, o qual garante a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” para garantir o preparo para o exercício da cidadania. Também estão em desacordo com a Lei e as Diretrizes que incluem a história e a cultura afro-brasileira e indígena nos currículos. E se opõem às metas do Plano Nacional de Educação (2014-2024) de superação das desigualdades educacionais pela erradicação de todas as formas de discriminação, respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental. Ataca a meta de valorização dos profissionais de educação pela promoção da saúde e da integridade física, mental e emocional, pois a delação anônima e os riscos de processos produzem um ambiente de insegurança e desconfiança nas instituições educacionais.
O ESP se opõe a uma regulamentação legal que, desde a constituição de 1988, expressa as lutas e conquistas de movimentos sociais e o cumprimento de acordos internacionais dos quais o país é signatário.

Em contraponto ao ESP foi criada a Frente Nacional Escola sem Mordaça, agregando entidades representativas de professores e estudantes que buscam resistir aos retrocessos que o ESP tenta impor.

Professora da Faculdade de Educação da UFRGS RUSSEL DUTRA DA ROSA

(Jornal Já)

Artigo anteriorBalé Folclórico do Amazonas comemora 15 anos com espetáculos inéditos
Próximo artigoFHemoam precisa completar seu estoque de sangue para o fim de semana

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui