O cidadão feito de bobo – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

A precipitação e a falta de rigor são vírus que ameaçam a qualidade informativa. A manchete de impacto, oposta ao fato ou fora do contexto da matéria, transmite ao leitor o desconforto de um logro. Repórteres carentes de informação especializada e de documentação apropriada acabam sendo instrumentalizados pela fonte. Sobra declaração leviana, mas falta apuração rigorosa. A incompetência impune foge dos bancos de dados. Na falta da pergunta inteligente, a ditadura das aspas ocupa o lugar da informação.


O jornalismo de registro, burocrático e insosso, é o resultado acabado de uma perversa patologia: o despreparo de repórteres e a obsessão de editores com o fechamento. Quando editores não formam os seus repórteres; quando a qualidade é expulsa pela ditadura do deadline; quando as pautas não nascem da vida real, mas da cabeça de pauteiros anestesiados pelo clima rarefeito de certas redações, é preciso ter a coragem de repensar todo o processo.

A autocrítica interna deve ser acompanhada por um firme propósito de transparência e de retificação dos nossos equívocos. Uma imprensa ética sabe reconhecer os seus erros. Confessar um erro de português ou uma troca de legendas é relativamente fácil. Mas admitir a prática de atitudes de prejulgamento, de manipulação informativa ou de leviandade noticiosa exige coragem moral.

Reconhecer o erro, limpa e abertamente, é o pré-requisito da qualidade e, por isso, não é fácil conciliar a livre busca do interesse individual com o respeito a exigências comunitárias fundamentais. Num mundo marcado pela total impessoalidade, a retórica da probidade é mais lucrativa que a prática solitária da virtude. Só que na sociedade brasileira exagera-se na teatralização. Por aqui, a irrefreável tendência a tirar vantagem das situações é encenada, sobretudo pelos políticos profissionais, como indignação contra os desmandos administrativos e a corrupção endêmica.

Como a consciência ética é seletiva, irregularidades só são apontadas quando convêm aos que disputam fatias do Poder. Neste país, projetos individuais se sobrepõem acintosamente às instituições. Como é fácil driblar as regras fundamentais do jogo social, a elite se sente sempre tentada a perseguir de forma selvagem seus interesses. Por mimetismo, a classe média e o povão justificam o crescente recurso a expedientes ilegais como imperativo de sobrevivência na selva dos grandes centros urbanos. Enquanto nefelibatas acreditam que expurgos ideológicos podem livrar a sociedade de suas velhas nódoas, os maquiavélicos transformam a lama, própria e alheia, na água benta que os batizará para o exercício do poder.

As sociedades que mais estiveram à mercê de surtos de autoritarismo são rotineiramente abaladas por escândalos escabrosos. A vulnerabilidade institucional que outrora ensejou a implantação de regimes discricionários hoje propicia a roubalheira sistemática. Com a aposentadoria dos caudilhos e generais, os ladrões engravatados se profissionalizaram. Na origem do autoritarismo e da ladroagem encontramos uma mesma causa: a debilidade institucional. Se o perigo das recaídas ditatoriais parece mais distante, a fraqueza das instituições dá azo à insegurança generalizada e aos saques programados do Erário. Infelizmente, a sociedade brasileira ainda acredita que seus problemas poderão ser minorados se der a sorte de escolher pessoas honestas para postos-chave. É fraca a consciência da urgência de se criarem dispositivos que fortaleçam as instituições de modo a dificultar as ações dos que desejam manipulá-las em benefício próprio.

É interessante notar que se, por um lado, as instituições são débeis a ponto de se deixarem manobrar por interesses pessoais, por outro, o indivíduo delas não recebe a proteção básica a seus direitos fundamentais. O que torna nossa sociedade perversa é o fato de a vulnerabilidade institucional ser benéfica aos poderosos e madrasta para o cidadão comum. Das práticas mais comezinhas do cotidiano às decisões dos mais altos escalões administrativos é patente que as instituições não conseguem impor funcionalidades impessoais. Não servem à coletividade porque funcionam mal e porque se ajustam aos projetos de seus dirigentes circunstanciais.

Num certo sentido, continuamos reféns da mentalidade do colonizador. No subconsciente das classes dirigentes ainda subsiste muito do velho desejo de “descobrir ouro” para fazer fortuna e cegar as massas com o ouro de tolo das promessas a fim de manobrá-las. Para os destituídos de “sabedoria”, sobra o trabalho duro. O extrativismo econômico se transforma, deslocado para o campo das mentalidades, na atitude de que é preciso tirar vantagem das situações. Por essa razão, pouco se veste a camisa da coletividade. A busca míope de objetivos pessoais e grupais desconsidera os imperativos globais.

Com isso, vão as instituições se afastando dos princípios para a realização dos quais foram projetadas. Como os desvios de conduta não são esporádicos e localizados, difunde-se a sensação de decadência coletiva.

Não por acaso, as eleições costumam ser precedidas de tiroteio entre os caciques da política brasileira. Todos subitamente se convertem à causa da moralização dos costumes administrativos. Esse jogo de cena, cada vez mais canhestro, é resultado de as denúncias cabeludas serem manipuladas por políticos profissionais ao sabor de seus interesses eleitoreiros. Nenhum deles mostra efetiva preocupação em fortalecer as instituições de forma a evitar que continuem a ser aviltadas e saqueadas. O cidadão está sendo feito de bobo. As denúncias, como têm sido propaladas, não têm nenhum compromisso com a moralidade pública. O respeitável público só toma conhecimento de falcatruas quando os membros das quadrilhas se desentendem ou quando estão em questão jogadas de efeito no jogo em que se disputa um naco do poder municipal, estadual, federal. É triste.

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