O que acontecerá no inquérito que vai investigar o presidente Jair Bolsonaro, aceito pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), a pedido do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, depois das denúncias feitas pelo ex-ministro Sérgio Moro na semana passada durante seu discurso de demissão?
Como se trata de acusações de supostos crimes comuns cometidos pelo presidente da República, a investigação só poderia ser pedida pela PGR, com a autorização do Supremo Tribunal Federal.
Na decisão desta segunda, o STF entendeu que há indícios suficientes para abertura da investigação.
A partir do aval dado agora pelo STF, será aberto um inquérito conduzido pela Polícia Federal, que então produzirá um relatório para ser encaminhado a procurador Augusto Aras.
Interferência na PF
O inquérito vai investigar se, ao interferir na Polícia Federal, como acusa Moro, Bolsonaro cometeu os crimes de coação no curso do processo (quando se ameaça autoridade para interferir em um processo em interesse privado próprio ou alheio);
Advocacia administrativa (patrocinar interesse privado diante da administração pública valendo-se da qualidade de funcionário);
Prevaricação (faltar ao cumprimento do dever por interesse ou má fé) ou corrupção passiva privilegiada (quando agende público age, ferindo seu dever, cedendo a pedido ou influência de outra pessoa).
Falsidade ideológica
O inquérito também vai avaliar se, ao usar assinatura de Moro no decreto de exoneração de Márcio Valeixo, ex-diretor-geral da PF, o presidente teria cometido falsidade ideológica. Isso porque Moro afirmou não ter assinado o documento com a exoneração, apesar de seu nome ter aparecido no Diário Oficial.
De acordo com a Constituição, um presidente em exercício só pode ser investigado ou processado por crimes cometidos durante o mandato — seria esse o caso se comprovadas as acusações feitas por Moro.
Segundo Aras, se as acusações de Moro se mostrarem infundadas é possível que o ex-ministro tenha cometido denunciação caluniosa ou crime contra a honra, duas possibilidades que também serão investigadas no inquérito.
A partir do momento em que receber o relatório da PF, Augusto Aras vai decidir se apresenta ou não uma denúncia ao STF.
“Se achar que há indícios fortes de crime, o PGR apresenta uma denúncia ao Supremo”, explica o professor de direito Constitucional da USP Elival da Silva Ramos. “Então a Câmara dos Deputados precisa autorizar, com anuência de pelo menos dois terços dos deputados, para que o STF possa deliberar ou não sobre a aceitação da denúncia.”
Peso da decisão da Câmara
Caso a Câmara não dê o aval para o STF decidir sobre a aceitação denúncia, o processo fica em suspenso até o fim do mandato do presidente.
Foi o que aconteceu com duas denúncias contra o ex-presidente Michel Temer (MDB) feitas ao STF pelo ex-PGR Rodrigo Janot e uma feita pela ex-PGR Raquel Dodge.
No caso de Temer, nos três casos, a Câmara não autorizou que o Supremo avaliasse a aceitação ou não da denúncia, e ele respondeu aos processos somente após o fim do mandato.
Se, diferentemente do que aconteceu com Temer, a Câmara der o aval e o STF decidir dar seguimento a uma denúncia feita pelo procurador-geral da República, o presidente é afastado por até 180 dias, tempo limite para que o caso seja julgado pelo próprio Supremo.
Se for considerado culpado, o presidente perde o mandato e responde pelos crimes como um cidadão normal.
“A consequência maior seria a perda do mandato”, explica Ramos. “Considerando que as penas (dos supostos crimes) são baixas, o mais provável é que penas de prisão sejam comutadas por penas alternativas.”
Se foi considerado inocente ou se o julgamento não terminar em até 180 dias, o presidente continua seu mandato normalmente.
Crime de Responsabilidade
Também existe a possibilidade da Câmara dos Deputados considerar que há indícios de um crime de responsabilidade, o que poderia dar início a um processo de impeachment – que aconteceria separado do procedimento iniciado por Aras.
“(As ações como relatadas por Moro) deixam aberta a porta para caracterização de crime de responsabilidade, primeiro passo para um processo de impeachment”, afirma Maurício Dieter, professor de criminologia crítica da USP.
“Se comprovado que ele agiu de modo incompatível com a dignidade, com a honra, e com o decoro do cargo, ele poderia ter praticado um crime de responsabilidade”, afirma Rogério Cury, professor de direito penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Dieter explica que a lei sobre crime de responsabilidade é muito vaga e aberta a interpretações, o que torna difícil fazer afirmações mais contundentes sobre se os supostos atos de Bolsonaro seriam ou não considerados crimes de responsabilidade.
“A lei dos crimes de responsabilidade tem toda uma história hermenêutica (um histórico de interpretações diferentes). Para caracterizar as pedaladas fiscais como crime de responsabilidade (que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff), por exemplo, foi feita toda uma ginástica interpretativa”, afirma Dieter.
Em última instância, a abertura de impeachment é um processo mais político que jurídico, e depende de quanto apoio o presidente tem no Congresso Nacional.