
No final de abril, às margens do rio Negro, representantes de comunidades ribeirinhas, assentamentos, extrativistas, terras indígenas e periferias urbanas de Manaus se reuniram na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Tupé para uma capacitação inédita: a Formação para Multiplicadores em Regularização Fundiária e Ambiental no Interflúvio Madeira-Purus. A região atualmente sofre pressão pela expansão da fronteira agrícola, pelo garimpo e pela extração ilegal de madeira.
Promovida pelo
Idesam, no âmbito do projeto Rede Floresta — executado pelo Instituto Centro de Vida (ICV) com recursos do Ministério das Relações Exteriores da Noruega (MFA) e da Iniciativa Internacional para o Clima e as Florestas da Noruega (NICFI) — e em parceria com o Ministério Público Federal no Amazonas (MPF), a Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ) e o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), a formação reuniu saberes jurídicos, tecnológicos e populares em uma só agenda.
O procurador da República Eduardo Jesus Sanches sublinhou que “a regularização fundiária é, talvez, o principal instrumento para a proteção dos territórios tradicionais. É a partir dela que se pode cobrar do Estado políticas públicas eficazes — fiscalização ambiental, repressão à grilagem e ao desmatamento, e o reconhecimento de direitos coletivos”, reforçou Sanches. Para Sanches, não basta debater leis: é preciso que as próprias comunidades compreendam, na prática, como denunciar invasões, pleitear títulos e exigir cumprimento de sentenças.

“Embora envolva normas e procedimentos complexos — até para nós, operadores do Direito —, é indispensável que as comunidades entendam conceitos básicos, saibam diferenciar áreas públicas e identifiquem instrumentos legais e órgãos a quem recorrer”, completou o procurador.
Um dos momentos mais marcantes de sua fala foi a explicação do Enunciado nº 47 da 6ª Câmara do MPF, que confere efeito jurídico imediato à autodelimitação feita pelas próprias comunidades, mesmo antes de qualquer homologação oficial. Na prática, esse princípio se materializa na Plataforma Territórios Tradicionais, sistema público de mapeamento participativo onde as comunidades registram, por meio de atas coletivas, a extensão de seus usos e ocupações ancestrais.
Paralelamente, três ferramentas digitais foram apresentadas como camadas de proteção adicionais aos participantes do evento. O aplicativo Tô no Mapa, desenvolvido pelo ISPN e outras organizações parceiras que atuam no bioma Cerrado, permite que qualquer morador — sem precisar de conhecimento técnico em geoprocessamento — desenhe no celular o perímetro de seu território, gere relatórios e exporte arquivos que têm respaldo jurídico junto ao MPF e órgãos ambientais. “O Tô no Mapa viabiliza a autodeclaração territorial respaldada pelo Enunciado 47 e emite relatórios para pleitos judiciais ou administrativos. É uma ferramenta simples, porém poderosa, capaz de dar força documental à voz das comunidades”, explicou André de Moraes, assessor técnico do ISPN.

Ana Cláudia Chaves, assessora técnica da GIZ e do projeto Territórios Vivos, ressaltou a importância dos jovens como agentes territoriais. “Estamos falando de áreas onde há conflitos fundiários, assédio ambiental, desmatamento. Muitas dessas comunidades sequer têm documentos que comprovem sua existência ali. O envolvimento da juventude é a chave para mudar essa realidade”, defendeu Chaves.
Já a Plataforma Territórios Tradicionais, resultado de parceria entre o MPF, a Rede PCT e a GIZ, funciona como uma interface web colaborativa, onde lideranças podem acompanhar ações, mapear ameaças e compartilhar boas práticas de manejo sustentável.
A escolha da RDS do Tupé para a realização da formação não foi aleatória. A Área Protegida está dentro do Sítio Ramsar Regional do Rio Negro, a maior área úmida de importância internacional do planeta, com 12 milhões de hectares, 17 unidades de conservação federais, estaduais e municipais e oito terras indígenas. Além disso, tem exemplos de governança exitosos e serve de laboratório para demonstrar como comunidades locais, universidades e órgãos públicos podem manejar um território urbano-florestal. “Muitos jovens estão saindo das suas comunidades pela primeira vez; conheceram outra realidade, trocaram experiências e retornam com repertório para replicar”, observou Heitor Paulo Pinheiro, analista em geoprocessamento do Idesam.

A formação
A programação contemplou aulas dialogadas sobre marcos legais — Código Florestal, Estatuto da Cidade, Decreto Nº 9.994/2019 (que trata da regularização fundiária de áreas federais) — e o detalhamento do Enunciado 47 e da Portaria 90 do MPF (que criou a Plataforma Territórios Tradicionais). Os participantes também tiveram oficinas práticas e debates sobre casos que foram analisadas em grupo, extraindo lições sobre denunciabilidade e articulação com órgãos de fiscalização.
Alex Thomas, da comunidade Nossa Senhora do Livramento (RDS do Tupé), resumiu o sentimento geral: “Achei muito interessante o ponto de vista do aplicativo e dos sites apresentados. Vai ajudar minha comunidade a ter mais visibilidade dentro da RDS. Vou levar o kit e a apostila para as lideranças locais”, disse o jovem. Já Marianne Lima, do Coletivo Juntó (povos de terreiro), celebrou as conexões criadas. “O Amazonas é imenso, mas neste curso vimos que estamos unidos na mesma luta. O aplicativo facilita delimitar nosso território e afirmar nossa existência — território é corpo, é nossa identidade”, salientou Lima.
Para Kaline Batista, do coletivo Jovens Comunicadores do Sul do Amazonas (Jocsam), a formação ampliou horizontes. “Como coletivo, vamos usar esse repertório para dar voz a municípios pouco vistos, mostrando eventos, trabalhos e produções do interior’’, adiantou Batista. Os multiplicadores retornaram a Manicoré, Humaitá, Careiro, Careiro da Várzea, Lábrea e Tapauá com mapas, relatórios e um propósito: articular ações entre poder público e seus territórios para que cada linha desenhada no Tô no Mapa e cada território inscrito na Plataforma Territórios Tradicionais se transforme em políticas concretas.
“Essa rede de parcerias — MPF, GIZ, ISPN e Idesam — é um mosaico vivo de proteção para a Amazônia”, observou Fernanda Meirelles, Líder da Iniciativa de Governança Territorial. “No fim das contas, a simples ação de registrar um território em um aplicativo deixou de ser um gesto pontual: tornou-se um grito coletivo por justiça socioambiental, capaz de definir quem ficará, ou não, sobre a terra que habita”, concluiu Meirelles.