Como uma tatuagem ajudou polícia argentina a identificar rede de tráfico com brasileiras

E D. se perdeu até encontrar a patrulha no bairro Don Bosco/Foto: Divulgação

Exausta, depois de caminhar durante quase duas horas, a brasileira D.*, de 18 anos, pediu ajuda a um policial em uma patrulha estacionada perto de um posto de gasolina em Buenos Aires.


Em sua primeira visita à capital argentina, ela contou que estava perdida e que precisava socorrer a irmã, que tinha passado mal após ingerir 80 pílulas de cocaína. O policial e ela se entenderam com dificuldade pela barreira do idioma.

O caso aconteceu no dia 2 de julho, perto da meia-noite, e desde então ganhou destaque na imprensa argentina por envolver duas jovens em uma rede de tráfico internacional ─ e pelo papel-chave que uma tatuagem teve em sua solução.

O policial com quem D. conversou naquela noite, no bairro Don Bosco (província de Buenos Aires), pensou que a brasileira poderia ser vítima de tráfico de mulheres.

Ele ligou, então, para a promotora Analía Córdoba, da Promotoria de Violência de Gênero, Violência Familiar e Abuso Sexual, e pediu ajuda dela para a brasileira.

Depois da morte da irmã, brasileira D, está sob proteção da Justiça/Foto: Divulgação

A promotora conseguiu uma vaga para D. passar a noite em um abrigo para vítimas de tráfico de mulheres.

Corpo com tatuagem

No dia seguinte, porém, a promotora viu na TV que o corpo de uma mulher, com drogas no estômago, havia sido deixado na calçada do bairro portenho de Villa Devoto, a cerca de 30 km de Don Bosco. Era uma das principais notícias policiais daquela segunda-feira.

“Quando vi aquela notícia, logo pensei: ‘Essa é a irmã da menina brasileira que está perdida'”, contou a promotora.

As câmeras das ruas do bairro registraram o momento em que duas pessoas – posteriormente identificados como um homem do Suriname e uma mulher da República Dominicana – deixaram o corpo da jovem, de short e camiseta e uma tatuagem visível, na calçada.

O corpo da jovem tinha uma tatuagem em português. “Tudo posso naquele que me fortalece”. Uma frase “bíblica”, observou um policial que acompanha a investigação sobre o caso.

A combinação desses dois elementos – a descoberta do corpo e a tatuagem em português – levou as autoridades a suspeitar de que se tratava da brasileira desaparecida.

Depois confirmou-se que a jovem morta, A., de 19 anos, era de fato irmã de D.

O caso chamou a atenção das autoridades justamente por envolver duas irmãs brasileiras e por outros detalhes atípicos.

“Elas vieram pelo Rio de Janeiro. Dois fatos chamaram nossa atenção: que trouxessem cocaína do Brasil para a Argentina, o que não é comum, e que (a jovem morta) tenha ficado tanto tempo com as drogas no corpo”, disse à BBC Brasil a ministra de Segurança da Argentina, Patricia Bullrich.

Para os investigadores, Buenos Aires poderia ser apenas uma escala da droga que A. ingeriu em Belém, no Pará, onde passou alguns dias com a irmã menor, antes de seguirem para o Rio e de lá para a capital argentina.

Elas tinham passagens para ficar uma semana na cidade, mas antes do retorno, A. passou mal e foi levada por seus contratantes a um hospital.

E D. se perdeu até encontrar a patrulha no bairro Don Bosco/Foto: Divulgação

Na porta, disseram para D. que ficasse com a bolsa dela e da irmã e caminhasse para pedir mais ajuda, segundo apontou a investigação inicial.

As primeiras evidências indicam, contudo, que A. jamais entrou no hospital. Nada ali foi registrado, como constatou a polícia.

E D. se perdeu até encontrar a patrulha no bairro Don Bosco.

Mula

“Minha irmã é mula e me chamou para vir a Buenos Aires com ela para eu conhecer a cidade. Mas agora não sei onde ela está”, admitiu D. ao policial.

A polícia diz acreditar que D. realmente só veio como acompanhante da irmã ─ que já teria feito uma viagem para a Europa transportando drogas no corpo.

Dessa vez, segundo os primeiros resultados da autópsia, duas pílulas teriam estourado no estômago da jovem e podem ter sido a causa da sua morte.

Especialistas entrevistados na Argentina disseram que ela pode ter ficado com as pílulas de cocaína mais tempo do que o “suportável”.

O drama das irmãs A. e D. comoveu as autoridades da Argentina.

A promotora Córdoba disse que preferiu sair da sala no momento em que a psicóloga de sua equipe, que fala português, teve que informar a D. sobre a morte de sua irmã.

Outra integrante de sua equipe afirmou à BBC Brasil que se emociona ao lembrar-se do telefonema da jovem para mãe, em Rondônia, via WhatsApp.

“Fico emocionada só de lembrar. A mãe começou a gritar, a chorar, chamando o nome da filha que morreu e perguntando como a outra, de somente 18 anos, poderia resolver tudo, inclusive as questões burocráticas de translado do corpo”, contou.

A polícia ainda não sabe, contudo, se A. trouxe a irmã para passear em Buenos Aires ou se ela seria uma forma de dissimular sua participação em uma rede internacional de tráfico de drogas.

D. permanece sob proteção da Justiça Federal argentina. A jovem está recebendo apoio de psicólogos e deverá esperar, não se sabe por quanto tempo, para voltar ao Brasil, segundo fontes do Ministério da Justiça.

Já os que deixaram o corpo de A. na calçada ficarão presos por tempo indeterminado. Eles não sabiam que o bairro era monitorado por câmeras.

Os dois foram filmados tirando o corpo de um carro vermelho e colocando-o na calçada, antes de fugirem do local. Tanto a placa do automóvel quanto a tatuagem ficaram visíveis nas imagens.

A polícia chegou ao apartamento, onde as irmãs tinham ficado até aquele domingo, e prendeu os envolvidos – o homem do Suriname e a mulher da República Dominicana – apreendendo com eles dinheiro e joias.

O advogado Claudio Salomón Méndez, que defende o surinamês Hendrik “Gino” Dasman, reconheceu à BBC Brasil que seu cliente era reincidente: ele havia sido preso em 2011 em um caso que envolveu modelos em início de carreira e mulheres europeias que transportavam drogas no estômago, segundo reportagens da época.

O surinamês decidiu continuar morando na Argentina após ter sido colocado em liberdade condicional, de acordo com seu advogado.

Para a polícia argentina, trata-se de uma rede internacional de drogas. Mas que pode envolver também a exploração de mulheres.

O caso de A. é investigado agora pela Justiça Federal argentina – exploração e tráfico de mulheres, contrabando e tráfico de drogas.

“As vítimas desses esquemas são muito vulneráveis. Mas este caso das irmãs brasileiras é particularmente triste”, concluiu um funcionário do Ministério da Justiça argentino.

*Para proteger a identidade das duas, a BBC Brasil decidiu publicar apenas as iniciais, que não são as mesmas de seus verdadeiros nomes.

Fonte: BBC

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