Consciência Negra: Um passar d’olhos sobre a herança cultural negra no Brasil – por Osíris Silva

Escritor e economista Osíris Silva/Foto: Divulgação

Os escravos africanos e seus descendentes crioulos e mestiços influenciaram em profundidade a formação cultural do Brasil desde a época da Colonização. Raros são os aspectos de nossa cultura que não tenham sido moldados com a ajuda da mão e da inteligência africanas e afro-brasileiras. Na religião, música, dança, alimentação, língua, deparamo-nos com claras evidências da influência negra, não obstante as mais diversas formas de repressão sofridas.


No que tange aos sentimentos religiosos, de acordo com os estudos “IBGE 500 anos”, trata-se de uma tarefa complexa a análise do passado mais remoto, pela dificuldade que se tem de penetrar livremente na alma do crente, mais ainda quando este deixou pouco testemunho direto sobre sua fé, como foi o caso do escravo. Observa-se que, ao invés do isolamento, os africanos e seus descendentes aprenderam a conviver e a recrutar para seu universo religioso outros setores da sociedade, até mesmo pessoas livres e brancas.

O papel atribuído por Oswald de Andrade (1893-1945) ao indígena e ao africano revela um aspecto complexo e contraditório de sua visão sobre a religiosidade e a cultura brasileira naquele momento. Ambos aparecem entre a submissão passiva à cultura ocidental e o exótico. Para Thiago de Oliveira Virava, há de se observar, por exemplo, a visão do escritor sobre a importância da fé católica na constituição da sociedade brasileira.

Ao reconhecer a eficácia da fé no bom êxito das suas empresas, o português, que, sozinho, logrou resistir ao missionário, deu-lhe, nas primeiras assembleias do continente descoberto, uma ascendência preponderante. O índio politeísta não tardou a agregar um novo deus à sua mitologia, e o negro, habituado a ver em tudo manifestações sobrenaturais, deixou-se batizar com uma alegria de criança.

De acordo com Wilson Teixeira Moutinho, com muita dificuldade os negros africanos trazidos como escravos, de diversas regiões da África, procuraram manter seus valores e tradições culturais. Com o passar do tempo, a população de descendência africana se expandiu e as relações sociais entre os diferentes povos transformaram o país em um território mestiço e rico em diversidade cultural.

Na visão de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Boris Fausto e de tantos outros sociólogos, historiadores e antropólogos, com o tempo o Brasil herdou dos africanos padrões culturais que se amoldaram e influenciaram, que se transformaram e se adaptaram à convivência com outras esferas culturais, como a indígena e a europeia. É notório verificar que os povos escravizados vindos para o Brasil trouxeram ricas e milenares manifestações culturais, que até os dias de hoje se refletem no caráter, no comportamento, no jeito de ser e nos hábitos do brasileiro. Particularmente em relação à dança, música, às artes plásticas, ao artesanato, às religiões de origem africana, à capoeira, à culinária, à moda, etc.

Estima-se que a capoeira, considerada patrimônio nacional, seja praticada por mais de 10 milhões de pessoas em centenas de países do mundo. Muito apreciadas no Brasil profundo danças como o coco de roda, de origem incerta, mais cultuado Alagoas, Pernambuco e Paraíba, caracteriza-se pelo seu estilo particular de dança, podendo ser praticado em duplas ou fileiras. A influência africana e indígena tornou o coco um folguedo popular, com letras de músicas que falam sobre a natureza e a vida cotidiana.

Destacam-se ainda o jongo, originário da África, um ritmo que, segundo especialistas, teria influenciado diretamente o surgimento do samba carioca e o lundu, ritmo afro-brasileiro, criado a partir do batuque dos africanos mesclado com alguns ritmos portugueses. De acordo com Wilson Teixeira Moutinho, desenvolve-se com movimentos ondulares e é executado por flautas, tambores e alguns instrumentos de cordas, como o bandolim, quase sempre ignorando o canto. O lundu, com algumas modificações, ainda é praticado em algumas regiões do país, como no Pará, onde recebeu o nome de lundu marajoara, por ter sua origem na ilha de Marajó.

O NEGRO NA LITERATURA E NAS ARTES PLÁSTICAS

O Portal Geledés (https://www.geledes.org.br/pintores-negros-contribuicao-negra-a-arte-brasileira), analisando a presença do negro nas artes plásticas, observa que, embora de alcance restrito, há de se mencionar obras arquitetônicas e esculturais do Brasil Colônia, levando em conta não serem tão poucos os brasileiros afrodescendentes que se dedicaram à pintura, nem é pequeno o valor artístico de sua produção pictórica. Suas obras, informa, têm sido resgatadas pelo artista plástico e museólogo Emanoel Araújo, desde o centenário da abolição da escravatura, em 1988, com a exposição “A Mão Afro Brasileira”, e teve continuidade com a mostra “Negros Pintores”, que se inaugurou no Museu Afro Brasil, em São Paulo (SP), em agosto de 2008.

Na mostra, reuniram-se 140 pinturas de 10 artistas atuantes entre a segunda metade do século 19 e as primeiras décadas do século 20. O período em questão, na verdade, ainda não mereceu maior atenção dos estudiosos e historiadores da arte, lamenta o Geledés. Ao contrário, Emanoel Araújo ressalta “os maus tratos, a ignorância e a insensibilidade com que se trata no Brasil a história e a memória iconográfica” dessa época. “Durante muito tempo”, diz o museólogo, “pouco se sabia sobre esses pintores, pouco se conhecia de sua produção artística”.

“Na verdade, essas obras ainda surpreendem quando aparecem no mercado de arte”, ele acrescenta, lembrando “a necessidade de uma política de revisão para resgatar em profundidade essa produção artística”. De qualquer modo, dez artistas já passaram a ter seus nomes inscritos, definitivamente, na história da arte no Brasil. “A vida de cada um deles”, conta Araújo, “foi uma interminável batalha, um grande esforço pessoal, de uma tenacidade inimaginável, pela afirmação e reconhecimento de suas obras”. “O fato de seus nomes permanecerem já credencia a raça negra ao reconhecimento da nação pela sua contribuição à construção da cultura brasileira”, conclui.

Da relação constam, com ricas fotos de algumas de suas pinturas, os artistas plásticos Arthur Timótheo (1882-1922), Benedito José Tobias (1894-1963), Benedito José de Andrade (1906-1979), Estevão Silva (1845-1891), Firmino Monteiro (1855 – 1888), João Timótheo (1879-1932), Horácio Hora (1853-1890), Antonio Rafael Pinto Bandeira (1863-1896), Wilson Tibério (1923-2005). Além destes, ,erecem destaque os artistas negros João e Arthur Timótheo.

LITERATURA

O perfil do romancista brasileiro se mantém praticamente o mesmo desde a década de 1960, de acordo com a pesquisa do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB). O homem branco, hétero e da classe média ainda figura maioria dos títulos no mercado editorial nacional, que tem apenas 2,5% dos autores não brancos. Nos últimos dez anos, porém, esse padrão tem sido quebrado por novos escritores e autores consagrados que ganharam mais espaço.

No Brasil, destaca o estudo da UnB, pode-se falar em precursores do negrismo, considerando-se nessa escala as obras de Domingos Caldas Barbosa (1739-1800), Tomás Antônio Gonzaga (1744- 1810), Silva Alvarenga (1749-1814), todos no século XVIII, passando por Tobias Barreto (1839-1889), Castro Alves (1847-1871), Olavo Bilac (1865-1918) e Raimundo Correa (1859-1911), já no século XIX. Nos primeiros anos do século XX, merecem destaque Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e Avelino Fóscolo (1864- 1944).

DA mesma forma, observa que, até o Modernismo de 1922, e mesmo em décadas depois, o negro é representado majoritariamente de maneira estereotipada. A crítica, inclusive, é unânime em denunciar que o negro ou escravo, sobretudo no âmbito da narrativa, é representado de forma desumanizada, oscilando entre o Pai-João e o selvagem, vítima e algoz, e, portanto, humilde, resignado, servil, dócil, fiel, trabalhador, incansável agradecido, mas também imoral opulento, insaciável, sedutor, demoníaco, bestial, pérfido, criminoso, fujão, vagabundo e feiticeiro.

Em relação ao Modernismo, o estud destaca que brasileiro recebeu inspiração de diversos movimentos, como o Cubismo, o que abre espaço para a solidificação da presença do negro no campo das nossas letras. Cabe destacar que a visita de Blaise Cendrars ao Brasil, em 1924, que publicara a notável “Anthologie nègre” três anos antes deste acontecimento, assim como uma efervescência representativa do negro nas artes, não foram capazes nem de romper os lugares comuns dos estereótipos, nem ainda conseguiram impulsionar a primazia do negro em relação ao índio, vistos aqui enquanto agendas sociais.

Desta forma, a Antropofagia, de Oswald de Andrade, por exemplo, manteve diálogo com a tradição indianista de Gonçalves Dias e José de Alencar, ao discutir a identidade nacional considerando a figura do autóctone, conforme sublinha David Brookshaw (1983). Enquanto os poetas românticos estavam arraigados à visão idealizada e heróica do indígena e da nação, o autor modernista se inspira no nativo como elemento de incorporação das diversas identidades nacionais, a fim de compor o “cadinho” cultural que em certa medida é o Brasil.

Na poesia, Raul Bopp, Mário de Andrade e Jorge de Lima recuperaram estratégias já utilizadas pelos artistas europeus e poetas caribenhos. Se a inserção do tema negro foi novidade no modernismo, dada a multiplicidade de imagens deste coletivo populacional, a representação plástica, diatante e caricata foi a mais recorrente nos versos destes autores.

Porém, no romance o negrismo foi mais produtivo e ultrapassou a primeira fase modernista. As três primeiras décadas do século XX foram responsáveis por traçar as diretrizes que serão seguidas pela linhagem negrista, salienta Wilson Teixeira Moutinho. A década de 1920 legou ao Brasil Macunaíma (1928), de Mário de Andrade. A partir dele, emergem romances que se filiam ao que se convencionou chamar de negrismo sério-cômico, destacando-se: O mameluco Boaventura (1929), de Eduardo Frieiro; Jubiabá (1935), O compadre Ogum (1964) e Tenda dos milagres (1969), de Jorge Amado; e Xica da Silva (1976), de João Felício dos Santos.

Moutinho salienta que a década de 1930 trouxe a preocupação com um intenso revisionismo histórico e social, ao focalizar personagens e acontecimentos marcantes envolvendo o coletivo afro-brasileiro, ou mesmo salientando a luta diária pela sobrevivência desta população, através de personagens e acontecimentos típicos, como se pode encontrar em A marcha (1941), de Afonso Schmidt; Ganga Zumba (1962) e Benedita Torreão da Sangria Desatada (1983), de João Felício dos Santos; Chica que manda (1966), Gongo sôco (1966) e Suor e sangue (1948), de Agripa Vasconcelos; e Os tambores de São Luís (1975), de Josué Montello.

Segundo Luiza Brandino, professora de Literatura, as décadas subsequentes catalisaram o negrismo metaficcional, tendência que propõe a releitura do passado tomando para negá-lo quando preciso, modificá-lo ou reinterpretá-lo através da ficção. Localizam-se nesta tendência O forte (1965) e Luanda beira Bahia (1971), de Adonias Filho; A casa da água (1969), O rei de Keto (1980) e Sangue na floresta (1981), de Antonio Olinto; Rei branco, rainha negra (1991), de Paulo Amador; e O trono da rainha Jinga (1999), de Alberto Mussa.

O romance “Viva o povo brasileiro” (1984), de João Ubaldo Ribeiro, considerado a obra prima do escritor baiano, é um caso à parte. Ele procura congregar todos os procedimentos correntes nas linhagens anteriores para dissimular as recaídas na estrutura do romance de fundação. O livro é o último sopro negrista no âmbito do romance brasileiro do século XX. Esta classificação é apenas didática, pois os romances podem transitar de uma tendência para outra, salienta Moutinho.

No entanto, no artigo “Autores Negros da Literatura brasileira”, de maio de 2020, Patrícia Marinato põe lenha na fogueira, ao afirmar: sabe-se que até hoje a literatura estudada nas escolas é majoritariamente europeia e masculina, e mesmo o maior autor nacional sendo um homem negro – Machado de Assis –, pouco estudamos a respeito da narrativa negra. Nesse sentido, o Blog do QG elaborou uma matéria sobre alguns autores negros que seria importante de se conhecer e estudar melhor.

A começar por CAROLINA MARIA DE JESUS, que, de catadora de papel tornou-se uma das maiores escritoras negras da literatura nacional. A autora do famoso livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” publicado na década de 1960, Carolina Maria de Jesus narra a vida cotidiana na favela do Canindé, e como ela consegue sobreviver sendo catadora e mãe solo de três filhos. A fome, a extrema pobreza e as angústias dos favelados também são muito presentes em seus relatos, que foram traduzidos para 16 idiomas e vendidos em 40 países.

LIMA BARRETO – Filho de escrava liberta e afilhado de Visconde de Ouro Preto, senador do Império, Afonso Henriques de Lima Barreto foi um dos mais importantes escritores brasileiros. Foi autor das obras “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, principal expoente do Pré-Modernismo e “Clara dos Anjos”. Sua obra foi marcada pela crítica ao nacionalismo exacerbado e utópico, ao militarismo e pela denúncia social como racismo e a pobreza. Isso fez com que a literatura de Lima Barreto tenha se tornado um dos maiores símbolos da resistência e da militância no início de nossa República.

CRUZ E SOUSA – Filho de pais negros alforriados, João da Cruz e Sousa foi um notável poeta brasileiro do Simbolismo e conhecido como o “Dante Negro”. Sob a tutela do coronel Xavier de Sousa, Cruz e Sousa recebeu uma educação refinada que o permitiu que se destacasse em matemática e em línguas como inglês, francês, grego e latim. Suas obras são marcadas pelo sofrimento do ser – que muitas vezes se translitera através do preconceito racial – pelo espiritualismo, individualismo e pela obsessão pela cor branca. Vale ressaltar ainda, que embora tenha se tornado um homem culto e erudito, Cruz e Sousa não deixou de se engajar pela causa abolicionista e inclusive dedicou poemas a Castro Alves.

CONCEIÇÃO EVARISTO – Maria da Conceição Evaristo de Brito é uma escritora mineira, nascida na periferia de Belo Horizonte e de origem bem humilde. Migrou para o Rio de Janeiro em busca de melhores oportunidades e para isso teve que conciliar o trabalho como empregada doméstica e seus estudos na faculdade de Letras, onde se formou com 25 anos. Atualmente, Conceição Evaristo é mestre em Literatura Negra e doutora em Literatura Comparada, e tem diversas obras lançadas, desde romance a contos. Neles, a autora aborda temas como discriminação racial, questões de gênero e questões de classe social, dando ênfase na vida cotidiana e na realidade da mulher negra no Brasil.

STELA DO PATROCÍNIO – Pouco se sabe sobre a verdadeira história da poetisa Stela do Patrocínio. No entanto, o que sabemos é que ela foi uma interna da Colônia Juliano Moreira, que com a implementação de um tratamento psiquiátrico mais humano através da arte, permitiu que muitos artistas fossem descobertos, dentre eles Stela. A autora na verdade não escrevia, mas sim recitava seus poemas em um fluxo de ideias conscientes, que num geral falavam da condição da mulher negra e pobre. Com isso, nos anos 2000, Viviane Mosé publicou o livro “Reino dos Bichos e dos Animais é o meu nome”, que reúne uma série de poemas transcritos da autora.

MARIA FIRMINA DOS REIS –  Maria Firmina dos Reis foi escritora maranhense, fruto de um caso extraconjugal, num contexto de uma sociedade extremamente segregacionista tanto racialmente quanto socialmente. Se formou como professora e revolucionou o estado do Maranhão ao construir a primeira escola mista e gratuita da época, além também de se dedicar à publicação de contos e crônicas na imprensa local. Em 1859 publicou “Úrsula”, considerado o primeiro romance escrito por uma mulher negra na América Latina e primeiro romance abolicionista publicado por uma mulher, em língua portuguesa, marcando assim a história da Literatura Brasileira.

Por fim, vale salientar que os três grandes abolicionistas negros brasileiros, que se engajaram na luta pelo fim da escravidão, foram: Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio. Entre todas as nações do continente americano, o Brasil foi a última a dar fim ao regime escravista.

TIRAR A LEI DO PAPEL

A Campanha ‘Tirar a Lei do Papel’ vai para sua terceira edição. A Organização brasileira Geledés Instituto da Mulher Negra,  fundada em 2008, reflete sobre os desafios para a aplicação da Lei 10.639/03, que completa 17 anos este ano e ainda não saiu do papel. Tempo teoricamente suficiente, contudo, para firmar consideráveis avanços no ensino da história e cultura africana e afrobrasileira. No entanto, afirma nota do Portal, “a realidade é outra e os docentes de todo país ainda enfrentam dificuldades para pôr a lei em prática. A Campanha tem por objetivo incentivar professores a driblar os desafios para a aplicação da lei, além de tornar o assunto mais conhecido em todo o território nacional.

Manaus, 20 de novembro de 2020 – Dia da Consciência Negra

Osíris M. Araújo da Silva – Economista, escritor, membro do IGHA e da ALCEAR – Academia de Letras, Ciências e Artes do Amazonas

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