Mercadão Adolpho Lisboa – Por Paulo Figueiredo

Advogado Paulo Figueiredo (AM)

Veio pelo rio, em época de cheia. Chegou devagar, remando suavemente. As águas invadiam um dos lados do Mercado Adolpho Lisboa e abriam passagem para sua canoa, afinal ancorada sobre a ladeira de concreto. Vinha para conhecer o novo Mercado, antigo Mercadão, que marcou grande parte de sua existência.
Saiu cedinho de sua casa fincada na outra margem do Negro, com pés altos de palafita, resistentes ao regime das enchentes no Amazonas. Há quanto tempo não vinha a Manaus? Muitos anos. Nela não encontrava mais a sua cidade, muito menos a sua juventude.


Comungava de certa ansiedade. Diziam que tudo estava muito bonito, com o velho mercado de cara nova. Tinha rejuvenescido, ganhara ares diferentes, de Manaus Moderna, nome da avenida que lhe cortara o rosto e o afastara do rio. Na larga e longa pista de asfalto, com suas amuradas lindeiras ao rio, mãos estendidas, o álcool e a demência precoce, em expressões crispadas pelo infortúnio.

Advogado Paulo Figueiredo (AM)

Cismando, como gostava de ficar contemplando a floresta e o imenso caudal, chegou e foi entrando, pelo portão do antigo pavilhão dos peixes. Tomou um susto, tudo reluzia. O teto impecável, do qual pendiam luzes intensas, e uma gente toda de branco, da bota ao casquete, como somente costumava encontrar nos hospitais de sua infância, administrados pelo Serviço Especial de Saúde Pública, o SESP.

Passou pelo café-restaurante e alcançou o corpo central do prédio. Nele, uma sucessão de pequenos quiosques esquadrinhados, em formação militar, com portinhas, janelas e telhadinhos padronizados, erguidos entre passarelas de pisos de pedras portuguesas. Uma feirinha de produtos locais e outros de diversa origem, sob a vetusta e grande cobertura do projeto original, com suas tesouras de ferro. Antes já havia perdido as bancas de frutas, uma ausência sentida de sabores evidenciados, além do colchão sem fim de melancias praia abaixo, beijando o rio, expostas em profusão durante a vazante.

Na outra lateral, o pavilhão das carnes, com suas vitrines e ganchos sem conta, uma carreira de freezers e mesas rústicas de corte, organização impecável e asséptica. Mais homens de branco, como enfermeiros de facões afiados em pedras ásperas, num ambiente de muita claridade, provocada pelo sol que penetrava pelos basculantes de ferro de suas altas paredes.

Na parte frontal, uma reduzida fileira de barraquinhas de mesmo estilo, com raízes, folhas, frutos e essências da farmacopeia cabocla, uma panaceia pronta para resolver inúmeras enfermidades e deficiências físicas e mentais. Com os mesmos propósitos e com certa discrição, até pajelanças são oferecidas a turistas embasbacados, a serem operadas selva a dentro, nas cercanias da cidade.

Ele viu tudo, de ponta a ponta, e não gostou. Não encontrou mais os cheiros do velho Mercado Adolpho Lisboa. Dele, retiraram suas tendas características, com a enorme variedade de coisas somente nossas, o barril com tucupi, amarelinho, mexido a remo. Não havia mais no ar o forte cheiro do peixe de cada dia, sem falar nas tartarugas vendidas em quartos para o almoço de domingo em família. Nada das peixadas madrugadoras, servidas com caldos fumegantes em terrinas de alumínio, nem o jaraqui, a sardinha e o pacu, bem ticados e fritinhos na hora, com cheiro verde e pimenta malagueta, deixando no ambiente o aroma que estimulava a degustação.

Nada disso, tudo lhe roubaram, num pequeno universo que certamente não mais lhe pertencia, que perdera para sempre.(Paulo Figueiredo é Advogado, Escritor e Comrntarista Político – [email protected])

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