Os lugares e as palavras do escritor francês Geoges Perec

Escritor francês Georges Perec - Foto: Divulgação

O dia em que um escritor francês tentou “esgotar” um lugar de Paris apenas com a escrita


Georges Perec acreditou que poderia descrever todo o cotidiano de uma praça de Paris, mas logo percebeu que sua tentativa estava fadada a dar errado.

No dia 18 de outubro de 1974, uma sexta-feira de outono, às 10h30 da manhã, o escritor francês Georges Perec – famoso pelo livro A Vida Modos de Usar (Companhia das Letras) e membro do grupo de literatura experimental “Ouvroir de Littérature Potentielle” (“Abridor de Literatura Potencial”, em tradução livre) – sentou-se em uma mesa da Tabacaria Saint-Sulpice, no sexto arrondissement, em Paris, com a missão de transcrever tudo o que se passasse ao alcance de seus olhos: a praça Saint-Sulpice, seus transeuntes, os pombos, os automóveis que passavam, aqueles que estacionavam, os agentes de polícia que apitavam e faziam a patrulha, os ônibus que cruzavam as ruas, uns cheios, outros vazios, meio cheios, meio vazios, enfim, tudo.

Durante dois dias, sua tarefa de observação e de descrição continuou em outros terraços ou num banco da praça, onde havia (está lá até hoje) uma grande fonte projetada por Louis Visconti em 1844, um dos pontos turísticos de Paris (muitas pessoas compram passagens aéreas só para ver a grandiosidade da Igreja Saint-Sulpice). O resultado do experimento foi o livro Tentativa de Esgotamento de um Lugar Parisiense, publicado postumamente na França em 1982 (GG, 2016).

Perec sempre teve curiosidade pelo cotidiano, pelo banal, o que ele chamava em seus textos e discursos de “infracomum” – e não demorou a organizar a ideia na prática. Ele queria saber como falar sobre, como escrever, como explicar o que acontece aqui e agora diante de olhos de todo mundo. Acreditava que essa era uma maneira de questionar a realidade, um dos únicos métodos existentes que permitem tirar a “cortina que obstrui a percepção nítida do conjunto de ações e palavras que formam o cotidiano”.

Toda a obra de Perec, assim, foi uma tentativa de responder essas curiosidades “primeiras”, porque, para ele, uma boa descrição deve poder restituir cada detalhe da vida. A Tentativa de Esgotamento de um Lugar Parisiense começa, justamente, com uma grande restituição dos detalhes do local escolhido:

“Há muitas coisas na Praça Saint-Sulpice, por exemplo: uma sub-prefeitura, um prédio do Ministério das Finanças, um posto de polícia (…). Boa parte dessas coisas, senão a maioria, já foram descritas, inventariadas, fotografadas, contadas ou recenseadas. Meu propósito nas páginas que seguem foi mais de descrever todo o resto: o que geralmente não se nota, o que passa despercebido, o que não se dá importância: o que acontece quando não acontece praticamente nada, senão o tempo, as pessoas, os carros e as nuvens.”

Escritor francês Georges Perec – Foto: Divulgação

Perec queria, assim, ver não apenas o que é “extraordinário”, mas o que chamava de “tecido”. Ou seja: ele não queria ver apenas alguns elementos que formam o cotidiano, como coisas especiais que acontecem no meio dele, mas tudo o que o lhe dava conexão, a relação entre todos os elementos que constituam a rotina, o dia a dia de um lugar. Ele não queria ver “as notas separadamente, mas a relação entre elas, a música, o jogo, a interpretação musical. Ele não queria se ater à nota fora de tom, ao acidente, ao incomum, mas tentar capturar o comum do quase-nada, a trama do instante presente, o efêmero”, escreveu a antropóloga francesa Nadège Mézié em um artigo sobre o escritor.

“Temos que ir mais devagar, voltar ao mais simples. Obrigando-se a escrever o que não interessa, o que é mais óbvio, o mais comum, o mais sem graça”, escreveu o próprio Perec em um artigo no final da vida.

Para descrever “o resto”, o primeiro passo era necessário observá-lo, colocando toda a atenção em tudo o que se via. “Prestar atenção”, aliás, era precisamente o que, segundo o escritor, constituía a observação. Não apenas “correr os olhos” sobre a cena que presenciamos, mas apoiar o olhar (olhar e olhar de novo, atentamente), recolher cada detalhe pensando na sua restituição posterior, fosse no ato da escrita – como o exercício de Perec – ou posteriormente, como o caderno de campo de um antropólogo. Com todas essas ideias em mente, ele elaborou um dispositivo de observação: se instalava em uma mesa de café ou em um banco na praça e observava o que ocorria à sua volta, colocando tudo em folhas de anotações dispostas para ele.

Para tentar superar o desafio do “esgotamento do lugar”, Perec tomou vários pontos de vista em que a observação poderia se desenrolar: mudou de café, sentou-se nos bancos da praça ou perto da fonte Saint-Sulpice. Cada lugar de observação deveria lhe oferecer um ângulo sobre a realidade que ainda não tinha sido considerado, captando o que pudesse ter passado despercebido.

“A observação supõe uma atitude ativa em que a pessoa aguça seu olhar para ver o que normalmente não se vê, as coisas sob as quais habitualmente não paramos para observar. Perec queria questionar o habitual. Mas a questão é que nós estamos habituados a ele. Nós não o questionamos, ele é que não nos interpela. O habitual parece não levantar nenhum problema, nós vivemos bem sem pensar nele”, diz Mézié.

Em dado momento do livro, Perec mostra como há um grande jogo de diferenças no cotidiano: ao voltar no dia seguinte à tabacaria Saint-Sulpice, no mesmo horário do dia anterior, ele escreve: “Com relação a ontem, o que mudou? À primeira vista, parece igual. Talvez o céu esteja mais nublado? Muitas coisas não mudaram, aparentemente nem se moveram; eu mesmo sentei-me na mesma mesa”, começa. Em seguida, ele marca uma ruptura: “À procura de uma diferença: o café da prefeitura está fechado (…). Bebo uma água Vittel enquanto ontem bebia um café. Em que isso transforma a Praça?”

Cada um dos episódios de observação-descrição do livro (são nove capítulos ao todo) segue uma mesma estrutura: data, hora, lugar, tempo e descrição. Perec também tentou praticar uma espécie de minimalismo descritivo, evitando ao máximo o uso de adjetivos e advérbios e ignorando até mesmo o verbo. Para ele, a observação implicaria, mesmo que involuntariamente, uma “atitude discriminatória”, ou seja, uma seleção, uma escolha. A simultaneidade das ações do cotidiano impede que se observe tudo: “Quando eu viro a cabeça para a direita, não vejo o que acontece à minha esquerda. Nesse sentido, esta atitude seletiva levanta a questão da motivação do observador. O que nos faz nos interessar por tal elemento em vez de outro? E como justificamos tal escolha?”, problematiza Mézié.

Perec mesmo se pergunta: “Por que duas freiras são mais interessantes do que dois outros transeuntes?” A questão parece levantar o problema existente no banal: o de que mesmo nele existe uma hierarquia, e que certas coisas parecem captar muito mais a nossa atenção do que outras. O funcionamento do nosso cérebro, ainda mais quando já estamos cansados, pode pregar peças. A observação, quando realizada segundo esses princípios e com essa intensidade, é tão ativa e demanda um tipo de atenção que, ao longo do tempo, se cansa.

“Perec é um ‘globe-trotter’ da escrita. Ele queria fazer o tour da vida em seus mínimos detalhes, seus recantos, saberes, seus locais e objetos, seguindo caminhos inusitados”, finaliza Mézié.

O resultado do livro de Perec, segundo a antropóloga, não deve tê-lo agradado, porque a simultaneidade e a abrangência espacial reduziam significativamente as pretensões da observação-descrição. Em outras palavras, a tentativa de descrição exaustiva está inexoravelmente condenada ao fracasso, apesar de todos os subterfúgios e da intensa atenção que se ponha em prática.

Primeiro, porque somos fisiologicamente incapazes de completar a descrição. Nosso campo de visão é relativamente baixo em comparação com o de outros animais. A estratégia de usar diferentes pontos de vista resolve pouco a nossa incapacidade de ter olhos atrás da cabeça.

Outro limite fisiológico é o cansaço, que aumenta com a atenção intensa para um único lugar.

Mas o grande fracasso, enfim, é o problema epistemológico da atenção discriminatória ou seletiva: o observador, mesmo sem se dar conta, se concentra em alguns aspectos em detrimento de outros. A realidade não nos chega completa, ela é previamente discriminada pela observação (ou pela nossa atenção). O observador que se compromete a descrever tudo de um lugar não tem nenhuma razão que justifique a seleção operada. Perec, que procurou distinguir o tecido e fazer abstração do eventos que se destacavam (o extraordinário), descobriu um novo limite que lhe escapava ao controle: alguns fatos impunham-se mais à sua observação do que outros e a seleção que se efetuava revelava-se definitivamente ingovernável.

Perec tentou dar razões à sua observação-descrição limitada: “Por que mencionar os ônibus? Provavelmente porque eles são facilmente reconhecíveis e regulares: eles cortam o tempo, pontuam o ruído de fundo, no limite poderíamos dizer que eles são previsíveis. O resto parece aleatório, improvável, anárquico. Os ônibus passam porque eles têm que passar, mas nada quer que um carro faça marcha à ré”.

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