Teatro sem ensaio – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

Por que a escrita às vezes fica tão difícil? Esta indagação leva-me a pensar sobre a liturgia da escrita. Serei capaz de classificá-la? Não. Nem quero. Não gosto de definições e sou tão indisciplinado no meu caótico pensar, que jamais me arvoraria a adotar conceitos invariavelmente redutores. Opto pelo jorro espontâneo, transportem para algum incerto lugar. Preciso de pousos, mas que sejam em terras longínquas… virgens… receptivas ao meu desassossego.


Não tenho receitas para a vida. Nenhuma servirá de suplemento às perplexidades do meu existir. Sou um vivente às pressas, e, na maioria das vezes, amontoo descasos sobre descasos, até perder-me por completo nessa pilha imensa de papéis amarelecidos. Confesso que procuro arrumá-los, dar ordem ao que não tem ordem – então desisto. Não me conformo com as renovadas desistências. Tento outra vez… e mais… e mais, há sempre resíduos por catalogar. Não sei como se acerta na vida e nem porque nela se erra. A vida é um precário teatro sem ensaio. Somos todos protagonistas de uma contínua cena, distante de prévios arranjos, os atos se sucedem, alheios a intervalos ou a merecidos descansos. Descansa-se de tudo: menos da vida. E não há bastidores nessa montagem ininterrupta. Anda-se à mostra, a nu, apenas com o anteparo de trajes postiços.

Trago a consciência da minha instintiva vocação. A percepção me serve de bússola para atravessar mares tempestuosos. Invejo aqueles que são racionais, mas não consigo aderir a julgamentos precipitados nem a simplória evidência de certos fatos. Por mais que me incline a versões pragmáticas, delas fujo com receio de embaralhar-me nas dúvidas de mim. Transito entre paradoxos e os contrários não me afligem, antes, apazíguam-me. Aspiro a difíceis escaladas – quanta ambição de Ser! –, travo batalhas interiores ao balanço do pêndulo do relógio. Picos de temperatura me açoitam. Viajante perpétuo sou, Jamais saio, todavia, do lugar – fixo e imobilizado pelos redemoinhos da alma.

Não existem pausas na estrada do Ser. É viver e viver e viver. Aceitando a fragilidade dos fortes e a firmeza dos fracos. E, sobretudo, acreditando no potencial de imaginar, de ir além dessa realidade tão mesquinha e avara. Caros leitores e leitoras, talvez a palavra represente o solilóquio que mais me agrada. Por isso dela faço uso, mesmo que o teatro da vida não me permita a menor revisão antes do espetáculo de estreia. Enfrento uma plateia anônima que tem rostos que conheço, todos os rostos terminam por ser familiares. Do lado oposto a mim mesmo, por acaso também não estou? A proximidade me assusta porque o espelho não apenas deslinda a figura, mas desenha o esboço de uma humanidade uniforme. Nesse mimetismo, por vezes cruel, faço parte de uma multidão que se apresenta amorfa. Somos todos iguais entre os iguais, assim como diferentes entre os mesmos iguais. Não há incoerência nesse errante conjugação.

Escrevo em consequência de uma necessidade existencial. Revolvo as entranhas, remexo em casas de marimbondo. A teia não é simples, há linhas transversas, outras emaranhadas, ainda as que se esgarçam ao sabor da turbulência. Não me adapto às linearidades, persigo caminhos em curva, do cimo ao declive, o salto se faz abruptamente. A palavra ganha força quando a ela atribuo o peso das significâncias. As vestes se rasgam – eu me transformo numa escritura sem nome.

E o texto se agrega à pele, imanência do eu. Paramento-me de sinais ortográficos. Serei apenas uma letra sem som? Perdoem-me, este é um texto de cumplicidade com o leitor.

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