A Gota D’Água – por Isabela Abes Casaca

Mundo Numa Gota D'Água (Desconhecido)Traga-me um copo d’água, tenho sede
e essa sede pode me matar.
Minha garganta pede um pouco d’água
e os meus olhos pedem teu olhar.
(Gilberto Gil)


Imagine uma história de ficção. Uma ficção que se passa numa realidade alternativa, distante e distópica. Num mundo onde os povos perderam sua força, onde seus governos são meros fantoches, suas leis são apenas fachada. Quem realmente manda são as grandes companhias.

Agora, imagine que estas companhias detenham o monopólio de tudo que é essencial para sobrevivência humana, inclusive a água!

Você provavelmente pensará: Nossa! Que rede de intrigas! Ainda bem que é só uma história de ficção distópica.

E se eu te disser que isso não é tão imaginação assim?

O Banco Mundial recentemente anunciou que até 2050, um bilhão de pessoas viverão em cidades sem água suficiente. O que é uma notícia alarmante, visto que se trata de um futuro muito próximo. Em alguns grandes centros, este quadro já se faz presente, a exemplo da crise hídrica em São Paulo. Mas, é importante lembrar, outros lugares do globo já enfrentam a escassez há anos.

Caso continuarmos no atual ritmo, é sujeito nos enquadramos no enredo da série de livros Duna, do autor Frank Herbert. Onde a maioria dos personagens vivem numa baita pindaíba de água, tendo de extraí-la de fezes e cadáveres.

Como sabemos o corpo humano é composto de água, entre 70 e 75%, portanto, esse líquido é essencialíssimo para manutenção de nossa vida. A conclusão que facilmente chegamos é que o acesso a água deve (ou deveria) ser um direito humano. Todavia, como é de se esperar, existem opiniões divergentes sobre o assunto. Veja a declaração de Peter Brabeck-Letmathe, presidente do grupo Nestlé:

A água é, claro, a matéria-prima mais importante que temos hoje, no mundo. É uma questão de se devemos privatizar o suprimento normal de água para a população. E há duas opiniões diferentes, nesta questão. Uma delas, que eu acho extrema, é representada pelas ONG’s que martelam sobre declarar a água um direito público. Significa que, como ser humano, você deveria ter direito à água. Esta é uma solução extrema. E uma outra visão é a de que a água é um alimento como outro qualquer e, como outro alimento, deveria ter valor de mercado. Pessoalmente, acredito que é melhor precificar um alimento para que todos sejamos conscientes de seu preço e que então tomemos medidas específicas para a parte da população que não tem acesso algum à água, tendo então, muitas possibilidades diferentes ai.” (grifo nosso)

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(Veja o vídeo completo, para legendar é só ativar a opção “legendas”)

Procurando ser razoável, não extremista, como o senhor Peter fez questão de categorizar: Vamos seguir a premissa de que, a água deve ter um preço, com a finalidade das pessoas não a desperdiçarem. Então, as grandes companhias podem ter o direito de comércio sobre tal matéria-prima, com a condição de explorarem o bem de forma responsável, e lembrando dos menos favorecidos, que não podem pagar pelo produto final.

Vida Engarrafada DocAté este ponto tudo parece perfeito e bonito; na teoria. O documentário Vida Engarrafada, O Negócio da Nestlé com a Água (Bottled Life, Nestle’s Business with Water – 2012) se propõe a investigar a aplicabilidade do discurso teórico na concretude da realidade.

Segundo o programa de responsabilidade social da supramencionada empresa, no leste da Etiópia, a Nestlé está ajudando a ONU, com o fornecimento de água potável a um campo de refugiados, sendo este um dos programas humanitários por ela apoiado.

Citando outra oratória de Brabeck: “O nosso relatório de responsabilidade social empresarial é tão grosso quanto o nosso relatório financeiro, então eu acho que é um bom equilíbrio que é refletido.” Mediante essas palavras somos induzidos a crer que encontraremos um projeto exemplar no campo de refugiados.

Infelizmente, não é bem isso que acontece. Veja o que a refugiada Ruquinya Abdi Ahmed relata: “A situação melhorou. Graças ao encanamento. Mas eu só fico com duas a três latas por dia. Isso tem que atender a dez pessoas para beber, coser e lavar roupa. Às vezes, passamos de dois a três dias sem água. Devido a problemas de poço, pode faltar luz. Então temos de esperar o especialista reparar o sistema. É exaustivo. Temos de repartir com os vizinhos, e economizar ainda mais.”

Fica transparente que a falta de água persiste. Ao verificar as instalações do projeto, os documentaristas encontram apenas três bombas velhas e um sistema funcionando parcialmente. Bekele Negash, um dos funcionários da estação de bombeamento, informa que, a Nestlé parou de sustentar o sistema em 2004. Desde então, não acompanham mais o projeto. E que as bombas “novas” foram trocadas em 2007 e 2008, atualmente a estação se mantem graças a verba de Saint Lazare.

Perante essa estarrecedora revelação nos perguntamos: Mas a Nestlé não havia se comprometido a longo prazo com o projeto? Em outro pronunciamento do presidente do grupo, podemos verificar onde realmente está o compromisso da empresa: “Sem água não há sustentabilidade para nossas empresas e nossos acionistas. Isso tem de ser a nossa prioridade principal. A disponibilidade permanente de água é fundamental para a nossa capacidade contínua de crescer e atender as necessidades dos consumidores no mundo inteiro.” (grifo nosso)

A comprometimento está com as suas próprias empresas, com seus acionistas e com os consumidores. Consumidores que, numa concepção oriunda do nossos sistema econômico, significa: Indivíduo que possui recursos financeiros para pagar por um determinando produto. Logo, o compromisso não está com o ser humano, em sentido amplo.

O documentário Vida Engarrafada, segue escancarando a atuação predatória da companhia, que esgota as fontes aquíferas; e constrói mercados consumidores em países pobres, onde o abastecimento de água potável, via atuação estatal, é precário e insatisfatório. É o caso das cidades do Paquistão e de Lagos, na Nigéria.

Um exemplo brasileiro está na cidade de São Lourenço (MG), atualmente o Parque das Águas é administrado pela Nestlé, que além de cuidar de toda a estrutura, também capta, engarrafa e distribui a água da cidade para o Brasil e exterior. A companhia em questão chegou a secar uma das mais famosas fontes dessa cidade.

Segundo depoimento da senhora Alzira Maria Fernandes, uma das moradoras da região: “Só acha bonito quem não viu como era antes. Eu frequentava muito ali. Era uma maravilha. Agora a Nestlé está acabando com tudo. Água nenhuma mais tem sabor. A fonte Magnesiana chegou a secar, agora voltou, mas só cai uma tirinha, tirinha. E era bastante.

As fontes do Parque das Águas São Lourenço são reconhecidas por suas propriedades terapêuticas, fruto de seu índice alcalino. A terapeuta Nair Ribas D’Ávila, expõe sua opinião: “Uma água que cura as pessoas é um presente que a natureza nos oferece de graça. É muito especial e o que está acontecendo aqui é um sacrilégio.

Além do supracitado documentário, temos também o excelente projeto A História das Coisas (The Story of Stuff Project), que dedicou um vídeo para contar A História da Água Engarrafa, condensando a explicação das estratégias de marketing, criação de demanda, enfim do modus operandi das companhias que pretendem vender o produto em tela. Colocando até em xeque a qualidade real do produto vendido como superior a água que temos disponível em casa.

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Como podemos solucionar essa trama? Uma das possíveis soluções está na nossa iniciativa de procurarmos não consumir este produto em questão, esta é parte que nos cabe. Num nível mais amplo, cabe as lideranças nacionais e globais, sejam elas atuais ou futuras, se comprometerem, de coração, a garantir o abastecimento de água potável para as pessoas.
Ficam as reflexões: Com o que/quem você quer colaborar? Que tipo de pessoa/líder você quer ser? A água é um direito humano? Dinheiro é bebível? A quem pertence a água do mundo? Você tem sede de que?

FONTE: http://www.novaagora.org/2015/04/a-gota-dagua.html

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