Conheça Afuá, ‘Veneza Marajoara’ onde só se anda a pé ou com bicicletas

Moradores de Afuá, A "Veneza Marajoara" - Reprodução

É possível viver em um mundo sem carros e motos? A “Veneza Marajoara” mostra há 133 anos que sim. O título é da cidade de Afuá, localizada ao norte do estado do Pará, no arquipélago do Marajó. Por lá, é proibida por lei a entrada de carros e motos na cidade. O meio de transporte mais usado entre os 37,7 mil habitantes é a bicicleta ou adaptações da magrela, como Bicitáxi e Bicilância, respectivamente táxi e ambulância sobre a bike.


“Hoje a gente vive com bicitáxi, a gente depende do bicitáxi porque ele serve para muitas coisas, para levar pessoas doentes, para fazer publicidade, para passeios”, explica Sarito, morador de Afuá e criador do veículo.

Sarito criou o primeiro veículo adaptando bicicletas em 1995. A produção do novo transporte caiu no gosto da população e as pessoas ganharam autonomia nas adaptações, principalmente para prestação de serviços.

“Bicitáxi” é como chama os serviços feitos de bicicleta em Afuá – Reprodução

Como quase sempre carrega mais de uma pessoa, essas adaptações da bicicleta são chamadas em geral de bicitáxi. Mas há as que ganharam outros nomes, como a bicilância, usada principalmente para transporte de pacientes e resgates da zona rural para o hospital na cidade .

“Os moradores criam suas formas de vida a partir de suas necessidades e criatividade”, afirma o professor de história Agenor Sarraf, marajoara que estudou Afuá.

Afuá fica na região próxima à foz do Amazonas, em área de várzea, com enchentes que afetam a região de maneira sazonal. Por isso, a maior parte da cidade fica suspensa em palafitas, inclusive as ruas e ciclovias.

O acesso até lá é de barco ou táxi aéreo. Apesar de estar no Pará, a capital mais próxima é Macapá, no Amapá, distante 84 quilômetros, cerca de 4 horas de barco. Belém fica distante 320 quilômetros.

Afuá fica no Marajó, no Pará — Foto: Prefeitura de Afuá/Reprodução

‘As crianças gostaram e as pessoas se adaptaram’

Criador do primeiro “bicitáxi”, Raimundo Souza, 55 anos, conhecido como Sarito, disse que a invenção partiu da vontade de levar as crianças para passear na garupa, o que não era possível com apenas duas rodas.

“O primeiro bicitáxi foi uma bicicleta com três rodas. As crianças gostaram e as pessoas começaram a se adaptar a andar. O nome foi a junção de bicicleta com táxi, e a partir daí comecei a cobrar para transportar as pessoas”, lembra.

De três, os modelos foram avançando para quatro rodas – conectando duas bicicletas – e outros elementos. “Hoje nós temos bicitáxi caríssimo, mais caro do que uma moto, com som, equipado”, conta Sarito.

“Têm pessoas que usam a bicitáxi para manter a família. Durante três anos vivi do bicitáxi, sustentei minha família com o serviço”, complementa o criador.

Socorro de bicicleta

“Bicilância” é utilizada para resgate de pacientes em Afuá – Reprodução

O coordenador do Corpo de Bombeiros de Afuá, Max Serrão de Oliveira, está na cidade há 18 anos. Ele é de Oeiras do Pará, já trabalhou em Belém, e disse que se identificou com o modo de viver da cidade, até por já adotar a bicicleta para se descolar antes de ir para Afuá.

“A primeira percepção foi de uma cidade única, uma cidade de ar puro e alimentação saudável, além de ser um lugar muito bom pra se morar, por isso estou aqui até hoje”.

Na brigada, os bombeiros possuem embarcação e “bicilâncias”, que acabam sendo quadriciclos feitos com bicicletas modificadas para transportar pacientes.

Como no veículo só há lugar para dois socorristas, quando necessário, os demais acompanham as ocorrências de bicicletas.

Sarito diz que em 28 anos de bicitáxi na cidade, já são muitas histórias carregadas em cima das rodas das magrelas.

Hoje, 133 anos depois do início dessa história, o bicitáxi e todos os outros “biciserviços” em Afuá marcam a identidade, o modo de viver dos moradores.

‘Se não tivessem inventado o carro?’

Em Afuá, moradores usam bicicleta para se deslocar — Reprodução Prefeitura de Afuá

Para Agenor Sarraf, também marajoara e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará (PPHIST/UFPA), o século XXI está mudando o viver em cidades e Afuá mostra que é a formação cultural de um povo que influencia diretamente no modo de viver urbano.

“Me parece que as pessoas querem ter acesso aos bens e serviços da vida urbana, mas querem o sossego da vida rural. É possível viver sem carros? Sim. Se não tivessem inventado o carro? Se tivessem só charretes? Só as bicicletas? Viveríamos só com isso. Tudo tem a ver com formação cultural e muitas cidades, grandes centros, estão replanejando e recolocando bicicletas para controlar fluxo de carro, para dar acesso a espaços com mais segurança e porque é mais barato”.

A ministra da Cultura, Margareth Menezes, que esteve esta semana no Pará para participar de assuntos relacionados à Amazônia, concorda com o professor. Em entrevista à TV Liberal, ela reforçou que a cultura é reflexo da identidade de um povo.

Reprodução

“Trazer a COP para cá, várias outras ações virão, principalmente de fortalecer a cultura popular, de proteger a natureza. É a partir da cultura popular que a gente se inspira que a gente traz a nossa identidade. Cultura traz transformação social e quando desenvolvemos a cultura, promovemos geração de renda “, disse a ministra.

E falando em criatividade, é algo que não falta na cidade marajoara: Bicitáxi, Bicilância e também biciaçougue são alguns dos serviços encontrados em Afuá que utilizam a bicicleta para transportar pessoas e o que mais for necessário de um lado para o outro na cidade.

A peculiaridade existente em Afuá já foi foco de estudo pela pesquisadora Vanessa Simões. A dissertação “Ideadores de Bicitáxi: cartografias de experiências estéticas em modos de viver e fazer bicitáxis na Veneza Marajoara” procurou entender os processos de criação e uso vividos com o bicitáxi a partir da experiência social em Afuá.

“Bicitáxis são resultado de necessidades e limitações de um povo que cria soluções, agregando ao processo sua expressão artística e cultural, cheia de referências que vão do pop à tradição amazônica, aliando e combinando imaginários de formas surpreendentes”, diz a pesquisadora.

Afuá (PA) tem ciclovias nos principais locais — Foto: Reprodução/Internet

Mas o que mais me encanta nos bicitáxis é como eles constroem a identidade e a vida social da cidade, sendo constantemente reinventados para fins diversos. É o puro suco da inventividade e criatividade brasileira, que é infinita e muitas vezes nasce da carência de recursos, mas vai muito além dela”, complementa.

Da necessidade se fez a criatividade

O professor Agenor Sarraf volta um pouco no tempo para explicar o contexto do nascimento da cidade de Afuá.

“Como o Marajó é um grande arquipélago, é comum ter algumas cidades que têm lugares feitos sobre madeiras, depois chão batido, depois asfalto; mas Afuá se formou de maneira muito singular na construção dessa cartografia física, inclusive com o conceito europeu de cidade, não por acaso se intitulam como Veneza do Marajó”.

Vista da cidade de Afuá, no arquipélago do Marajó – Reprodução

Ele lembra que o início do que viria ser Afuá se deu no período da borracha. Na região, havia muito seringal, comum em área de várzea.

“No auge da economia da borracha, os donos de seringais passam a povoar o território, e os novos moradores passam a trabalhar também com madeira, palmito, e economia de subsistência [pesca, coleta de frutos], e esses novos moradores passam a construir pontes, a abrir caminhos no meio da várzea, lembrando caminhos no meio de seringais.

E à medida que vai se urbanizando, chegam os administradores e planejamento urbano tentando ordenar com o que se conhecia, que era o ordenamento europeu, mas junto com o saber indígena e marajoara. E à medida que há expansão e crescimento, nasce da necessidade de usar a bicicleta”, diz o professor de história.

“Bicitáxis” personalizados durante o Festival do Camarão em Afuá, no Marajó — Foto: Ascom/Prefeitura de Afuá

Parece que em Afuá sabe-se viver conforme a natureza. Quando a cidade está alagada, devido o alto volume de chuvas e da maré, as pessoas se divertem na água, saem na chuva, o que parece não incomodar. É a incorporação do que é natural ao modo de vida e ao que tudo indica, tem dado certo para os afuaenses.

Em tempo de discussões sobre consciência ambiental e viver bem conjuntamente com a natureza, talvez as metrópoles brasileiras possam se inspirar na Veneza Marajoara e aprender a dar uma outra perspectiva cultural, ambiental e educacional sobre o ir e vir da população.

g1

Artigo anteriorNeymar acerta com Al-Hilal por duas temporadas, diz jornal
Próximo artigoSindicatos e movimentos sociais podem mudar o Amazonas (04) – por Valdemir Santana

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui