Isto também é Natal

Luiz Lauschner Escritor e empresário

Um senhor, vestido de maneira simples, me procurou no meu restaurante perguntando se eu era alemão. Expliquei que me chamavam de alemão, que falava a língua, mas que era brasileiro. Embora a língua alemã seja instintiva para mim, percebi que ele falava corretamente, porém procurando as palavras e tinha um sotaque indefinido.


Contou-me que era polonês, marinheiro especializado em eletricidade. Que já tinha ganhado altos salários, mas agora, com 64 anos seu ganho caíra. Disse-me que as empresas de navegação registravam-se em países onde a legislação não era exigente, como o Panamá e Libéria. Citou que tinha colegas filipinos, que estavam acostumados a ganhar pouco e desconheciam seus direitos. A empresa em que trabalhara era grega, mas o navio viajava com bandeira liberiana. Haviam descarregado no Golfo do México e saído com destino a Hamburgo, mas, no caminho pararam em Cayena, Panamaribo e Georgetown, capitais das três Guianas. Em Georgetown alegaram que a empresa estava falida e que o navio não podia seguir viagem. Teria de ficar ai. Quando acontece algo assim, é praxe receberem uma passagem de avião, para que cada tripulante pudesse voltar pra casa.

Eu observava o homem, em seu esforço para relatar isso. O esforço não vinha exclusivamente em procurar as palavras, mas também do incrível esforço que custava a ele relatar as humilhações que fora vítima.

Numa flagrante violação dos direitos internacionais, foi oferecido a cada um o valor de cem dólares e só. Eles se revoltaram e fizeram um registro policial na cidade para usarem no futuro. Mostrou-me o registro da ocorrência bem como uma foto do navio de onze mil toneladas. O constrangimento do homem era visível, ao mostrar seu passaporte cujo nome não era Eugen Schmidt Kotcza. Ele continuou:

– Lá não poderia ficar, porque temia por minha vida. Poderia morrer porque os ladrões me tomariam por turista, por minha pele clara.Comprei uma passagem de ônibus até o Brasil. Ônibus de péssimas condições, em estradas piores ainda. Viajei quase três dias até chegar a Boa Vista. No escritório da Polícia Federal de lá, me encaminharam a Manaus. Foi outra viagem de ônibus, dessa vez muito melhor, de apenas 12 horas. Aqui, em Manaus, não sabendo nenhuma palavra em português, consegui ir a pé até o a Polícia Federal e me apresentar, para não passar por clandestino e em busca de ajuda. Lá, me falaram que teria de ir a Belém, porque era o lugar mais perto para encontrar um consulado polonês.

Comovido, lhe ofereci um almoço, que aceitou agradecido. Continuou explicando que fora ao cais e lá encontrara um espaço para dormir numa rede e tomar banho num barco que sairia para Belém. Tentara convencer ao comandante que o transportasse pelos 85 reais que ainda tinha. Era apenas a metade do valor e ele não aceitara. Seriam quatro dias de viagem e havia café, almoço e jantar.

Tirei 120,00 reais da carteira e dei ao homem. Ele me devolveu 20 reais, dizendo que ainda sobrariam 15,00 para ele comprar alguma água mineral no navio. Na saída, ele me apertou a mão, com os olhos brilhando.
– O senhor não imagina como eu me sinto constrangido. Se e encontrar mais pessoas boas, poderei passar o natal em casa. Mas não tenho vergonha de dizer: muito obrigado. Sei que entende o que significa esse muito obrigado, nas atuais circunstâncias.

Muitas vezes na vida fui extorquido por pessoas que me contavam histórias comoventes. Dessa vez, me senti feliz por poder ter sido útil. Se a historinha foi inventada, jamais saberei, mas me senti feliz. Fiquei torcendo para que este quase ancião pudesse passar o final de ano junto aos seus, na sua cidadezinha na Polônia, perto de Gdansk.

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