O Direito à Desconexão – por Arthur Felipe das Chagas Martins

Direito à desconexão - foto: ilustrativa

Quando comecei a advogar em 2008, ouvi de alguns colegas mais experientes (digamos assim) que o expediente do advogado precisava, obrigatoriamente, incluir tempo para ler o jornal no início do dia.


Isso era não somente um ato voltado à atualização perante as novidades sociais, mas refletia uma boa capacidade de organização de tempo dentro de um expediente.

Outra máxima comum no meio advocatício mais antigo (e acredito que em outras áreas profissionais também) era a de que não há urgência que não possa esperar vinte e quatro horas. Presenciava-se sua aplicação quando alguém ligava ao escritório procurando o profissional, e ouvia como resposta algo do tipo “o doutor não volta mais hoje: pedirei que ele lhe retorne amanhã”.

Quase vinte anos depois, a realidade é muito, muito distinta. Em grandes centros urbanos, você tem dificuldade de encontrar uma pessoa que não carregue um aparelhinho de (já não tão) modestas proporções, capaz de fazer ligações, mandar mensagens, autorizar pagamentos, tirar fotos, carregar arquivos de toda sorte, responder a comandos de voz e até dedurar sua atual localização, tudo ao alcance de alguns toques de dedo – ou mesmo sem que você precise fazer qualquer coisa.

A revolução tecnológica – hoje denominada como Quarta Revolução Industrial – vem potencializando a integração de complexos sistemas de tecnologia à vida de pessoas e empresas. Coisas como inteligência artificial, robótica, internet das coisas e computação em nuvem fazem-se presente na nossa vida desde quando acordamos até quando vamos dormir. Foi essa revolução que permitiu a grande parcela da sociedade manter-se ativa durante o nefasto período em que convivemos com a pandemia do COVID-19.

A repentina migração dos tradicionais contratos de trabalho para o regime de teletrabalho botaram à prova as inovações trazidas à Consolidação das Leis do Trabalho pela Lei 13.467/2017,  que regulamentaram aquilo que muitas empresas já faziam há tantos anos: permitir que seus empregados trabalhassem de qualquer lugar, utilizando-se de computadores e dispositivos de compartilhamento de internet – estes últimos rapidamente substituídos por telefones celulares.

Foto: ilustrativa

À primeira vista, tudo parece muito bonito e prático; contudo, como toda mudança, os incômodos rapidamente surgiram. Da mesma forma que o advogado, que antes tinha na sua secretária uma espécie de filtro nas chamadas recebidas, passou a ser acionado diretamente em seu celular, o empregado viu-se na incômoda situação em que o seu ambiente de trabalho passou a se confundir com a sua casa. Sua vida residencial viu-se invadida por telefonemas, mensagens individuais e grupos de conversas, com questões profissionais ávidas por soluções instantâneas, muitas vezes em horários onde o expediente ou nem teria começado, ou já teria terminado.

A nossa legislação trabalhista não tem qualquer disposição que defina regras ou limites para o contato entre empregado e empregador via telefonemas ou mensagens de texto. O art. 6º, parágrafo único da CLT define que os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio, mas não cria nenhum limite para o seu uso.

Haveria, talvez, a discussão quanto à possibilidade de enquadramento do contato fora do horário de trabalho como um regime de sobreaviso; entretanto, a jurisprudência ainda é vacilante quanto a tal questão, como se verifica das teses conflitantes abaixo:

HORAS DE SOBREAVISO. CELULAR CORPORATIVO. INDEVIDAS.

Nos termos da súmula 428, I, do C. TST, o uso de telefone celular, por si só, não configura o regime de sobreaviso. Mesmo que o empregado tenha que utilizar o telefone celular, quando fora do local de prestação dos serviços, não se considera que está em sobreaviso, caso não tenha que esperar o chamado da empresa, sem possibilidade de se locomover livremente ou até mesmo de se dedicar a outra atividade em seu período de descanso, conforme se extrai do disposto no item II do referido verbete. Mantém-se.

(TRT-15 – ROT: 00104873520195150094 0010487-35.2019.5.15.0094, Relator: OLGA AIDA JOAQUIM GOMIERI, 1ª Câmara, Data de Publicação: 17/11/2020)

RECURSO ORDINÁRIO. HORAS DE SOBREAVISO. DIREITO À DESCONEXÃO. SÚMULA Nº 428 DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO.

O uso de aparelho celular fornecido pela empresa ao empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso. No entanto, considera-se em sobreaviso o empregado que deve permanecer com o aparelho ligado fora da duração normal do trabalho, sendo acionado para o serviço durante o descanso, em regime equivalente a um plantão no qual não usufruía verdadeiramente do direito à desconexão, com liberdade para decidir o que fazer ou não fazer durante seu período de descanso. Recurso ordinário do reclamante conhecido e provido.

(TRT-1 – RO: 01008143220175010079 RJ, Relator: SAYONARA GRILLO COUTINHO LEONARDO DA SILVA, Data de Julgamento: 24/06/2020, Sétima Turma, Data de Publicação: 14/07/2020)

Note o leitor que as teses acima são ambas do ano de 2020, com diferença de menos de seis meses entre elas. E tratam rigorosamente do mesmo tema. Mas somente a segunda fala de um item importante na nossa sociedade: o direito à desconexão.

O direito à desconexão é o direito do indivíduo de não receber chamadas telefônicas, e-mails ou mensagens fora do horário de trabalho, em respeito aos direitos à sua saúde, repouso, lazer e vida em família e em sociedade. Há, hoje, diversos julgados que tratam de indenizações garantidas a trabalhadores exatamente quando tal direito é desrespeitado.

DANO MORAL. DIREITO À DESCONEXÃO. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS À SAÚDE E AO LAZER. BENS JURÍDICOS TUTELADOS INERENTES AO EMPREGADO. ART. 223-C DA CLT.

Nos termos do art. 223-B da CLT, o dano extrapatrimonial se configura quando há ofensa de ordem moral ou existencial à pessoa física ou jurídica, decorrente de ação ou omissão, sendo que a saúde e o lazer se encontram elencados no rol dos bens juridicamente tutelados inerentes ao empregado (art. 223-C, CLT). Nesse aspecto, o direito à desconexão do trabalho se insere no âmbito das garantias fundamentais à saúde e ao lazer (art. 6º, caput, e art. 7º, IV, da Constituição da Republica), consectárias do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III, CR), pelas quais o labor não pode ser um fim em si mesmo, mas sim o meio para o trabalhador promover sua subsistência e satisfazer suas necessidades e anseios pessoais, sem prejuízo ao repouso e ao convívio familiar e social. Violado o direito do empregado de se desconectar do trabalho, privando-lhe do devido descanso e do lazer, é cabível a reparação civil, consoante artigos 186 e 927 do Código Civil.

(TRT-3 – ROT: 0010285-79.2021.5.03.0043, Relator: Mauro Cesar Silva, Data de Julgamento: 01/07/2022, Decima Turma, Data de Publicação: 04/07/2022)

SOBREAVISO. CARACTERIZAÇÃO. USO DE CELULAR. DIREITO À DESCONEXÃO.

O instituto de sobreaviso, previsto no artigo 244, § 2º, da CLT, pressupõe que o empregado permaneça em sua casa, aguardando o chamado para o serviço, ou fique, à distância, submetido a controle patronal por instrumentos telemáticos ou informatizados, ou, ainda, permaneça em regime de plantão ou equivalente, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço durante o período de descanso. Desta forma, a caracterização do sobreaviso envolve a análise da possível restrição de liberdade de movimentação do empregado pela possibilidade de chamado ao serviço. Evidenciada a necessidade de o obreiro permanecer à disposição da empregadora durante os períodos destinados ao repouso, para atender aos chamados de viagem que poderiam ocorrer em qualquer dia ou horário, cabível o reconhecimento do instituto de sobreaviso, na forma do texto celetário. O advento das novas tecnologias não pode impedir a configuração do sobreaviso, quando demonstrado que o direito ao descanso, lazer e convívio familiar era vulnerado, prejudicando a efetiva e necessária desconexão do trabalhador. <p

(TRT-12 – RORSum: 00002975020225120010, Relator: MARIA BEATRIZ VIEIRA DA SILVA GUBERT, 6ª Câmara, julgado em 15/07/2023).

Apesar de tratar-se de tema não regulamentado, o direito à desconexão é tido hoje como garantia social e fundamental de todo trabalhador, mas que pode ter efeitos diferentes sobre gerações diferentes: enquanto um executivo de 50 anos sofre com a sobrecarga de notificações e informações que certamente o perseguem todos os dias, um jovem de 20 anos não se importa com tal questão, até mesmo entendendo que a possibilidade de trabalhar fora do expediente normal de trabalho seria um verdadeiro exercício de liberdade.

Como descrito pela Dra. Rosane Gauriau, em seu excelente artigo Direito à desconexão e teletrabalho: contribuição do direito do trabalho francês:

Desconectar significa não estar sempre acessível, não ser controlado à distância durante o tempo de descanso e recuperação; significa limitar o tempo de trabalho, fruto de conquista histórica dos trabalhadores e que “[…] continua ocupando lugar de destaque na luta entre a classe trabalhadora (pela sua diminuição) e a classe empregadora (pela sua extensão).”

Há, entretanto, projetos de regulamentação de tal questão. Destaca-se o Projeto de Lei 4.044/2020, de autoria do Senador Fabiano Contarato, que visa tanto restringir o contato do empregador com o empregado em períodos de descanso e férias como estender o regime de sobreaviso ao empregado que permaneça “submetido a controle patronal por instrumentos telemáticos ou informatizados (…) em regime de plantão ou equivalente, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço durante o período de descanso” – eliminando, de uma vez por todas, o requisito da restrição de locomoção tradicionalmente mencionado na jurisprudência especializada.

Como se observa, o tema está em discussão neste exato momento. Se por um lado as facilidades proporcionadas pela tecnologia facilitam a vida de profissionais nas mais diversas áreas, por outro derrubam a barreira entre a vida dentro e fora do expediente, demandando o estabelecimento de regras claras para que não fique nas mãos do judiciário a decisão sobre o bem da vida de empresas e empregados.

Arthur Felipe das Chagas Martins é advogado; especialista em direito e processo do trabalho e direito acidentário; mestrando em direito do trabalho pela PUC-SP; professor em cursos jurídicos voltados ao direito do trabalho e correlações com o direito previdenciário.

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