Os netos – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

Nessa pandemia, tivemos que ficar em isolamento, o que deixou a muitos inclusive eu, com depressão. Tudo isso por não ver os que amamos, e participar do dia a dia dos filhos e netos. Lembro que Victor Hugo achou tempo, em meio a suas pendengas com Napoleão III, para escrever “A arte de ser avô”, um livro de poemas. Escolho o início de um destes e o traduzo livremente, sem forçar as rimas do original: “Eu, que uma criança me deixa todo bobo/ tenho duas: George e Jeanne; um deles eu tomo por guia / e outra por luz. Corro ao escutar suas vozes / já que George tem dois anos e Jeanne tem dez meses”.


Convenhamos, netos fazem até um Victor Hugo escrever maus versos. Afora as derrapadas estéticas, o imortal criador da cigana Esmeralda e de Jean Valjean era um avô adorável, e há uma célebre foto em que ele aparece num canapé, enlaçando seus netos, e com um irradiante olhar de alegria – meio bobo, como ele próprio afirmava. Assim são as coisas.

Certa vez encontrei um amigo no Rio de Janeiro. Era uma tarde de outono na cidade maravilhosa, e o sol iluminava de viés a face do amigo, vincando-lhe injustamente as poucas rugas. Perguntei-lhe como estava passando. A resposta, dita com esperta ironia e após breve reticência, foi: “Vou indo… envelhecendo com a possível dignidade”. Ele já era avô, na época. Achei graça, porque eu era novo e não refletia a respeito dessas coisas.

Depois de alguns anos avô de Matheus e Bernardo, vim entender o amigo. Existem aqueles que envelhecem dignamente, e aí podemos incluir os solteiros, os ainda-não-avós, os tios e os comerciantes por atacado. Os avós, esses, não apenas perdem a dignidade, mas a honra, os amigos e, se não se cuidarem, o dinheiro e a roupa do corpo. Suas ocupações, antes tão solenes e regulares, embaralham-se por completo, e avô vive no limiar da criminalidade. Tudo acontece porque nesse inaugural mundo netocêntrico e sem medidas, apaga-se a noção do bem e do mal. Há os que roubam porque têm fome, há os que roubam para ficarem ricos – e há os que roubam para dar um aparelho de som ao neto. Na verdade, não era para ser assim.

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Consultor.

As crianças, quando nascem, passam à imediata órbita dos pais, e aos avós são destinadas as sobras. É algo que diz respeito ao necessário e ao supérfluo. Mas sejamos justos: o necessário, como o dormir por fragmentos, dar mamadeiras nas madrugadas, providenciar remédios a cada duas horas, fazer aviãozinho para colheradas de mingau, trocar fraldas, juntar chupetas do chão, lembrar-se das vacinas, isso é um direito sagrado e intocável dos pais. Assim foi estabelecido desde tempos remotos, e assim deve ser: não se contraria a lei natural da vida. Quanto aos avós, eles que se contentem com o supérfluo. Até hoje ninguém perguntou por que as crianças crescem tão velozmente: ontem nos olhavam com aquela carinha desconfiada, hoje já dão gargalhadinhas, logo mais estarão comendo xis com ovo.

Sabem por que isso acontece de modo tão rápido? É para que os avós tenham tempo de vê-los passar por todas as idades. Pensando bem, até que poderia ser menos rápida essa evolução, pois os avós teriam algumas décadas de felicidades a mais. E os netos não retribuem de caso pensado a tantos afagos e dedicações: porque isso de serem bonitos, simpáticos, gordinhos, risonhos, graciosos, inteligentes, fazedores de artes, etc., é apenas da sua natureza. Mesmo ausente por necessidade de saúde, não me conformo em ficar longe deles. Eu amo meus netos.

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