Semana Santa do passado – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

Os anos passaram na poeira do tempo. Os olhos cansados de prolongada vigília pouco enxergavam no entardecer. Vozes fugidias e barulhos furtivos que se misturavam ao chilrear dos pássaros. Nas asas da memória vultos apagados ganhando formas que rápido feneciam na mágica nostalgia do retornar. Na curva fechada, o bonde na curva da morte na Cachoeirinha, onde moravam meus avós, dos pullman, vagões luxuosos, aos lorés de bancos rústicos de madeira, esvoaçam imagens de ontem que são levadas por nuvens passageiras. O homem adulto que se perdia na vaga névoa das recordações.


Como seria bom que as lembranças da infância – rostos queridos, tímidos sorrisos e paisagens bucólicas – se perpetuassem envoltas em luzes crepusculares, banhadas de raios de lua, aquecidas pelo sol nascente que esplende e ilumina musgos e pedrarias. Como seria bom que não mais voltássemos procurando raízes, descobrindo plagas distantes e que não mais existem. Deixássemos que apenas os “passos da memória, em latejantes rastros, refizessem rotas renascidas para outrora e depois, o longe e o agora”, no cantar do poeta são-beneditense. Só dessa maneira não carregaríamos o peso da decepção.

A semana santa do passado era diferente, guardava-se mais, eu era coroinha da igreja de Santa Rita, e confesso que as vezes me dava medo vendo as igrejas todas cobertas com o manto roxo, mas não foi só a semana santa que mudou. Cadê o Castelinho onde dançávamos de braços dados nas noites evanescentes? O vento levou… Cadê a loja Capri do Zezinho na Eduardo Ribeiro no canto do fuxico, que de roupa tinha para satisfazer os fregueses? Cadê as ciganas desnudas, de corpos morenos e negras tranças, que se banhavam nas águas murmurantes que caiam em cascata das cachoeiras do Tarumã? Cadê as festas juninas que nos permitiam trocas de olhares cúmplices e juras ao calor das fogueiras crepitantes até o raiar da aurora? E o badalar dos sinos da igreja chamando para a novena do mês de Maria? E as procissões ao som cadenciado da banda musical quando carregávamos nos ombros andores santificados? E a velha gameleira que abria os braços alongados, galhos estendidos, para os abraços? E os mulungus esguios e floridos que atapetavam de pétalas vermelhas as estradas de sonho? Longínquas, as semanas santas com suas rezas balbuciadas no silêncio dos oratórios domésticos, dos pecados recolhidos e gulodices temporariamente retidas. Cadê os patos que deslizavam tranquilos no remanso das lagoas? As carambolas maduras trazem-me relances proustianos, madaleines adocicadas. Perco-me na busca do tempo que se foi. Afloram-me tristezas e mágoas na tentativa real do caminho de volta. Essas sensações, e outras mais, dominam-me, afogando na garganta um grito de saudade (ou de angústia?), sobretudo quando releio

Visita ao país da infância, um dos mais belos sonetos do aclamado poeta Waldemar Lopes. Rever é quase sempre um desencanto. Na tristeza de agora, há só e apenas/ uma igual sensação de morte em tudo.” No presente, tristeza, no passado, alegria e encanto, o olhar magoado observa que não há mais paisagens, objetos e pessoas queridas, restando apenas uma sensação de morte em tudo.” Realmente é a sensação que nos invade quando volvemos às plagas da infância e não mais encontramos as faces amadas de outrora.

A natureza, como que de luto, em eterno réquiem. Sentimo-nos estranhos em terras que já foram nossas, cercados de amigos e parentes. Ao longe, o cantar de um sabiá, perdido nos ermos do que resta da nossa floresta. Fecham-se-me os olhos ao embalo de perdidas quimeras.

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