A paz sonhada – por Flávio Lauria

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Professor Universitário

Imaginemos um dia em que multidões alegres cheguem de toda parte, com o nascer do sol, trazendo enfeitadas cestas de boa comida, fartas marmitas e farnéis recheados de manjares que desejam compartir com todos os que forem encontrando no caminho. E que, de forma descontraída, se reúnam em todas as praças do planeta, ainda mais floridas que o normal para essa ocasião.


Seria algo como, digamos, um milhão de pessoas na Praça Vermelha, em Moscou; trezentas mil na Praça de São Pedro, no Vaticano; mais de dois milhões no Central Park, em Nova York; passando das oitocentas mil no ensolarado Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro; cerca de dez mil no Pau Pombo, em Garanhuns; um milhão no Parque Palermo, em Buenos Aires; três milhões na Praça da Paz Celestial, a Tianamen, de triste memória, em Beijing. Na verdade, milhares, milhões o que couber nas praças de cidades, vilas, povoados, lugarejos. Algo incomum faria com que as multidões chegassem, todas, ao amanhecer desse mesmo dia – dia frio e cinzento aqui, claro e estival ali, indefinido e morno acolá, fresco e suave, barulhento e fervilhante no Parque dos Bilhares, em Manaus. O mesmo dia. A mesma expectativa. As mesmas vozes de esperança, cantando, dançando, confraternizando. Como se todo mundo comemorasse simultaneamente, em cada canto, uma vitória definitiva de Copa do Mundo ou o campeonato nacional de seu clube preferido.

O momento é singular. Velhos fatigados, arrastando antigos sofrimentos, sustentam expressões de espanto. Jovens bailam, dão-se mãos e lábios, abraçam-se e consumam suavemente o amor. Mulheres e homens, ainda sob o manto da desconfiança, entreolham-se, veem-se em novas expressões. E também se amam. As crianças reafirmam de maneira álacre suas ancestrais inocências. Percebe-se que alto-falantes fazem proclamações felizes numa miríade de línguas conhecidas e desconhecidas e que locutores barulhentos anunciam eventos incomuns, como, por exemplo, a derrubada de todos os muros da vergonha, os literais e os não reconhecidos, e a derrota de todos os apartheids.

Flávio Lauria é Administrador de Empresas e Consultor.

Há uma exibição generalizada de artistas amáveis em palanques, onde cantam, sapateiam e bailam. A atmosfera é de excitação vibrante, à maneira de um magnífico Woodstock universal. Muita gente, inclusive truculentos machões empedernidos, enfeita de flores coloridas seus cabelos.

O dia avança e as multidões não param de chegar, mesmo onde, devido à estação do ano, o frio aumenta e o dia já começa a escurecer. Os mais cautelosos temem pela segurança da reunião concomitante de multidões tão espessas. O clima, porém, é de surpreendente ordem. Como em um vasto, imenso, colossal domingo de Carnaval em Olinda. Como se na rua amantes da folia desfilassem em muitas troças do tipo da Ceroula, com orquestras magníficas e um frenesi de animação, dispensando governo, polícia e toda repressão. Há batuques, palmas e cânticos renovados. Tocam guitarras, violões, acordeões, trompetes, violinos, flautas e tambores. Há sorrisos, lágrimas, mas nenhuma dor.

De repente, a hora sendo a mesma e uma só em toda parte, as pessoas dão-se as mãos e como que envolvem a Terra em um abraço. É quando se lhes informa que esse dia, esse momento compartilhado de paz universal não é um sonho. E durará para sempre. É óbvio que uma apoteose dessa natureza não sobreviria em um mundo como o nosso dominado pelo dinheiro, em um mundo que se quer governado pelas forças brutas do mercado, em um mundo caracterizado pela exagerada desigualdade na repartição da renda e da riqueza, pela ganância impiedosa e por estruturas poderosas que agem para que tudo continue assim. Daí por que, na véspera da comemoração do Ano Novo não há como deixar de desejar que, ao contrário, por algum milagre, prevaleçam em nosso meio os valores da concórdia, da solidariedade, da sobriedade, da justiça plena, do amor. Da paz sonhada, enfim, por todas as pessoas verdadeiramente de boa vontade.

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