Terra indígena ganha ares de ‘lugar fantasma’ após abandono e normalização de invasores

Casas flutuantes em um braço quase seco do rio Solimões em frente à cidade de Fonte Boa - Foto: Reprodução

Quem caminha pela Boca do Mucura, na região do médio rio Solimões, tem a sensação de estar andando por uma terra fantasma. Ao menos até chegar à casa do tuxaua (cacique) Franciney Silva de Lima, 35.


“Nem que eu fique sozinho no Mucura, mas não abandono. É daqui que tiro o peixe, a melancia, o meu sustento”, diz. Franciney mora com a mulher, Neila, e os cinco filhos na terra indígena, que fica numa ilhota próxima a Fonte Boa (AM), cidade no Solimões acessada somente por água e ar.

O tuxaua (cacique) Franciney Silva de Lima, 35, com uma de suas filha em sua casa – Foto: Reprodução

A família é uma das seis que permanecem no território. Antes, eram 22. A maioria das casas de madeira e teto de zinco foi abandonada. As carcaças dessas moradias ficaram para trás e foram tomadas pelo mato. Em alguns casos, a madeira usada nas construções foi retirada.

“Somos agora seis famílias. Éramos sete, mas a filhinha de uma professora morreu na última enchente, e a família não aguenta chegar à casa de novo”, afirma Franciney.

Casas abandonadas – Foto: Reprodução

Os indígenas da terra são kokamas, presentes em distintos pontos do Solimões e alvos de diversos deslocamentos forçados ao longo dos séculos. A relação com as cidades passou a ser mais constante nas últimas décadas. Processos de demarcação tentam assegurar a relação com a terra.

A Boca do Mucura é um dos territórios na fila por demarcação. O MPF (Ministério Público Federal) instaurou um inquérito civil público para investigar conflitos fundiários entre os kokamas do lugar e um criador de gado, que reivindicava a propriedade do espaço.

Casas abandonadas na terra indígena Boca do Mucura, próximo a Fonte Boa – Foto: Reprodução

Uma ação pediu a demarcação do território, a favor dos indígenas, e a Justiça Federal no Amazonas concordou. A Funai (Fundação Nacional do Índio) foi condenada, em novembro de 2016, a finalizar o processo em até três anos. Passados quase seis, a fase não é nem de estudos por um grupo técnico.

A Folha pediu, por meio da Lei de Acesso à Informação, uma cópia do processo, mas a Funai sob Jair Bolsonaro (PL) negou o fornecimento, alegando ser procedimento de acesso restrito. Segundo o órgão, não se trata de “procedimento demarcatório propriamente dito”, mas de “reivindicação fundiária indígena”.

Casas flutuantes em um braço quase seco do rio Solimões em frente à cidade de Fonte Boa – Foto: Reprodução

A Boca do Mucura passou a ser cada vez mais alvo de invasores: pescadores, caçadores e madeireiros ilegais. As ameaças às famílias são frequentes. “Vou pegar a espingarda e atirar em você”, dizem a quem resiste ficar ali. “Hoje, passam armados, no canal ao lado de casa, e já não falo nada”, afirma Franciney.

A terra não tem energia nem água potável. Os indígenas buscam água, com lata na cabeça, em Fonte Boa, mais especificamente na torneira do porto. Ou represam água da chuva.

Escola abandonada na terra indígena Boca do Mucura, próximo a Fonte Boa – Foto: Reprodução

A comunidade vive da plantação de melancia, mandioca e milho, mais caça e pesca. Não há mais escola. A casa de Franciney tem uma sala de aula improvisada para oito alunos; ele é o professor.

A igreja católica que existia foi derrubada. O padre não aparece, os festejos de Santo Expedito não ocorrem mais. Franciney e os familiares são, hoje, evangélicos.

Morador da terra indígena Boca do Mucura prepara rede para pesca – Foto: Reprodução

Os que se foram tentam a sorte em Fonte Boa. Quem ficou quer permanecer.

“A gente se sente abandonado, mas só saio quando morrer”, diz o tuxaua. “Tento chamar as pessoas para voltar. ‘Vamos para o Mucura’. Por enquanto, elas dizem que não vêm.”

FONTE BOA (AM)

Folha S. Paulo

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